06/04/2022

LINGUA


A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados. 

A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular móvel e carnudo do assoalho da boca da maioria dos vertebrados. E que possui órgãos terminais sensoriais e pequenas glândulas. Ok, espertinho da Wikipedia. Mas uma língua é muito mais do que terminais nervosos. 

Pode não ser a parte do corpo mais sensível. 
Mas, certamente, é a mais versátil. 

Havia os desenhos rupestres que, de certa forma, também contavam um pouco do cotidiano das culturas antigas. Algo que levou a um sistema de símbolos, como vimos entre egípcios e mesmo os sumérios. A escrita nos permitiu articular ideias, traduzindo pensamentos em palavras.

Mas muito, muito antes, era a língua quem fazia esse papel. Sim, a tradição oral entre humanos é anterior. Histórias ouvidas ou vividas eram passadas de geração para geração, perpetuadas em rodas de conversa, que só muitos séculos depois se transformariam em história escrita.

Pra dar um exemplo: historiadores garantem que muito antes de A Ilíada e A Odisseia serem escritas, elas eram recitadas ou mesmo cantadas. Até que Homero pudesse escreve-las (no caso, se for verdade, plagia-las). Assim, na lábia, nasceram a maioria das mitologias e religiões.

Quando os portugueses invadiram o Brasil, em meados de 1500, os índios brasileiros não conheciam alfabeto algum. Não é demérito. Alguns políticos, youtubers e BBBs não conhecem até hoje e são amados por milhões. Para todos esses humanos iletrados, a melhor alternativa ainda é aprender (ao menos) a falar.

E foi a língua, esse pedaço de carne trêmula - com ou sem tucupi - na boca da gente, a grande responsável pela verbalização. A grosso modo: as cordas vocais emitem sons aleatórios que chegam até a boca. 

E é o movimento da danada que lapida o verbo. 

E se, sem ela, ninguém iria sequer formar uma palavra ou uma ideia, que dirá uma frase musical? Não haveria o la-la-la. Nem o Lula-la. Nem o Ei Bolsonaro vai tomar no cu, que a gente já lê no ritmo.

Sem a língua, pense nisso: nós não sentiríamos os sabores das coisas. 

As papilas gustativas estão todas lá! São algo entre 200 e 400 papilas que lembram microcogumelos. Cada uma tem de três a cinco botões gustativos, isso dá uns 1.500 receptores. Tão versáteis, que não só captam o sabor mas também são sensíveis à temperatura. 

A língua, a língua. 

Sem ela, não seria possível umidificar os lábios no tempo seco. Não faríamos aquela careta boba que as crianças morrem de rir. Nós não morreríamos de rir do Debi & Lóide na neve. 

Os beijos não seriam tão prazerosos assim. Nem uma lambida na nuca. Ou em mamilos. Nem o sexo oral. Esse nem existiria, na verdade. 

Não colaríamos os selos nas cartas, já pensou? 

Ok, eu sou um cara das antigas. 

Não lembro mais o que me motivou a escrever sobre ela. Talvez estivesse sentindo falta do toque de outra linguinha sem vergonha? Ou, sei lá, quem sabe estivesse inspirado e quisesse falar por horas e horas? Ou cantar? La-la-la-la!!! Ou pedir um Lula-la mais uma vez? 

Ou!

Talvez, apenas talvez, estivesse com fome e me lembrado de uma deliciosa língua de boi ensopada no bar do saudoso Bolinha, no Santa Tereza? De Minas. De Milton. Do Rosa. 

Eu já disse, sou um cara das antigas. Do tempo do Caetano Veloso e da Elza Soares. Da Flor do Lácio, do sambódromo. Da lusa América Latina em pó. 

O que quer, o que pode essa língua?


por Bob LeMont

19/08/2021

PESSOAS

 

Pessoas não são objetos. 

Não podem ser usadas, manipuladas, rotuladas. Pessoas não são lixo, para serem varridas ou jogadas de lado. 

Pessoas não são brinquedos, não são para montar e desmontar, não servem para divertimento particular, não podem ser colocadas na caixa de esquecimento quando nos enjoamos delas, ou quando se quebram por nossa incapacidade de zelar pelo que nos faz - ou, ao menos um dia, nos fez - bem. 

Pessoas não são acessórios, para desfilarmos com elas por aí por motivos fúteis, nem para serem deixadas penduradas por não serem adequadas a outras pessoas, pelos mesmos motivos. Pessoas não são retas, tortas, curvas. Porque pessoas não são apenas formas.

Pessoas são conteúdo.

Pessoas são música. Pessoas são dança. Pessoas são poemas. Pessoas são cinema, TV, teatro, literatura. 

Pessoas são seus sonhos. Pessoas são seu trabalho. Pessoas são sua família, seus amigos. Pessoas são suas buscas - buscas que costumam até ser melhores do que a arte do encontro. 

Pessoas gostam de movimento - na rua e na mente. Pessoas são seus olhares. 

Pessoas são o que aprenderam e ainda vão aprender. Sobre tudo e sobre nada. Sobre a loucura e a razão. Sobre Freud e Nietzsche. Sobre Pessoa e Leminski. Sobre Chico e Caetano. Sobre sexo e sensualidade. 

Sobre os mistérios da vida na internet, onde demônios e anjos transitam vestindo apenas suas verdades - que não são, necessariamente, verdades. 

Pessoas que promovem gestos respeitosos, merecem respeito.

Pessoas que são livros abertos, merecem ser lidas. 

Pessoas que são a diversidade, merecem o diverso.

Pessoas deveriam se ver mais numa canção, numa obra de vida. Deveriam sentir mais o corpo no Corpo, o espírito na voz de Milton.

Pessoas deveriam se encontrar no sorriso, na lágrima ou no silêncio que provocam.

Enfim, as pessoas são preciosas. 

Não pelo dinheiro que ostentam, mas pelo valor que dão à simplicidade das coisas, do viver. Ou que aceitam a complexidade de tudo, sem complexos. Preciosas pela atenção que emprestam a outras pessoas, em trocas justas de gentilezas. 

E isso é raro. 

E tudo que é raro, dizem, é precioso.

Alguns de nós não sabemos dar o devido valor. Seja pra nós mesmos, seja para outras.

Pessoas.





BABACA

 

Foi pra rua, caminhar, como fazia desde o começo do ano. 

Parou de fumar no ano passado, está bebendo menos. Comer em excesso já não é problema há 10 anos: fez a bariátrica, não tem como aderir a farra alguma na cozinha. A vida mais sadia era a meta pro ano novo. Caminhar, aprender a respirar. Encontrar um ponto de equilíbrio.

Que ano! Brigou com meio mundo por causa de eleição. Mas não dava mais pra aguentar aquela gente estúpida, falando aquelas bobagens todas, defendendo político que não tão nem merece defesa. Por conta disso, não falava mais com vizinhos, colegas, cunhado, e até com o irmão mais velho.

Clima ruim nas casas dos pais e dos sogros. É. "Natal e Reveillón vão ser uma merda", pensou, enquanto zerava o cronômetro pra iniciar a caminhada. Deu dois passos e sentiu um toque no ombro esquerdo.

Foi abordado por um rapaz.

- Você não é o Lugui? Aquele youtuber?

Não lhe pareceu, a princípio, ser alguém conhecido. Chamou-lhe pelo nome que usa em suas redes sociais e acertou na profissão, que usa como referência nos perfis: deve ser um seguidor. 

- Eu mesmo! - respondeu, sem olhar nos olhos para não criar uma falsa intimidade, mas devolveu o sorriso que recebera. Fingiu estar com dificuldade para zerar o cronômetro no relógio de pulso.

O rosto do rapaz mudou diante da confirmação. De simpático para... como descrever? Vazio? O olhar já não dizia nada. A respiração pareceu um pouco mais ofegante que o normal, mas poderia estar caminhando também. Afinal, era uma pista pública, feita para isso. Apenas. Não havia mais expressão alguma. 

Um breve silêncio precedeu o estalo.

Pá!

Dois segundos depois, conseguiu fitar o rapaz nos olhos. Mas sentiu a queimação na boca do estômago e quem estava em volta sair correndo. Novo estalo.

Pá!

Antes de cair, viu a arma na mão esquerda. Sentiu que desfalecia. Um filme da vida foi passando diante das vistas. Cenas da infância, da juventude. Romances que não deram certo, amores eternos. Viu nitidamente os pais, a esposa, a filha que faz intercâmbio no Chile. Até as brigas online. Aquele cara estranho, que começou a seguir você em cada postagem. O que tinha olhos com cores diferentes. Louco. Bloqueio nele.

Pá!

Já no chão, olhou pra cima. Viu seu assassino ainda preparar mais um tiro. Voltou a mira-lo bem nos olhos, como se procurasse uma explicação, um motivo. Aqueles olhos! Um azul e outro verde. Heterocromia, pesquisou. Raro. O louco que lhe ameaçava, pelo que dizia a respeito do candidato dele, também tinha isso... dizia.. coisas!.. deu... medo... foi melhor... bloquear.. aquele... maluco...

Pá!

A última imagem foi a postagem que encerrou o assunto entre eles nas redes sociais. "Cara, cansei dessa palhaçada!!! Pare de me seguir, por favor!!! Vou dar block em você, seu fascista covarde e escroto! Seu babaca!"..

Pá! 

O rapaz conferiu se Lugui estava mesmo morto. Jogou a arma do crime, já sem balas, dentro do rio que passa bem ao lado da pista de caminhada. 

Uma motocicleta fez bastante barulho antes de parar ao lado dele. 

Subiu na garupa e, antes de sumir na avenida, deixou claro para o cadáver (como se isso fosse possível).

- Põe na conta do "babaca"!!! Seu trouxa!!!!

Cuspiu sobre o corpo e partiu.
Nunca mais foi visto.

18/08/2021

O OUTRO LADO

 


Pessoal, cheguei!

Não me perguntem como foi a viagem. Dormi o tempo todo. Se o serviço de bordo foi bom, desconheço. Na verdade, não me lembro de ter subido em avião, navio algum. Sei que parti. De algum lugar pra algum lugar. No começo as coisas ficam muito, mas muito confusas. Pra vocês terem uma ideia, eu mal conseguia lembrar meu nome. Um cara lá apareceu aos berros, me chamando. Gritava: "oh Boninho! Oh Boninho! Aqui, rapaz!" Me senti diretor da Globo.

- Eu falei Bininho, pôrra!

Ah sim. Bininho. Desculpem. Eu me lembrava vagamente desse nome. Apelido, né? Mas esse rapaz parecia me conhecer muito bem. Foi a primeira pessoa que vi depois daquela luz fortíssima na minha cara. Caramba! Deve ter sido o trem que me trouxe. 

Ou seria um ônibus? Enfim! 

O cara foi o primeiro a me ver e correu pra me abraçar. Opa! Falei pra ir com calma e usar de certo jeito, porque tava com o corpo meio chumbado ainda. 

Como se eu tivesse passado os últimos meses enfurnado na cama, sabe?

- Puta que pariu! Esquece isso!
- Esquecer é comigo mesmo. Minha memória não tá legal mesmo não.
-Acredite: cê vai melhorar logo. Puta merda! Você vai lembrar de cada coisa!

É, o cara falava palavrão pra caramba. Mas me pareceu familiar. Muito.

Se me perguntarem onde eu estou, eu digo assim: é um lugar que não dá muito pra descrever, não. É qualquer lugar e é um monte de lugar que eu conheço. Eu sei que olho pra um lado e vejo os barrancos das Tabocas. Olho pro outro, vejo o Cristo Redentor lá ao fundo. Quando eu cheguei, parecia que tava tendo uma festa, algo assim. Tinha um monte de gente olhando, cochichando. Achei que eles tinham que ter mais cuidado. Parece que tem ou tinha uma gripe aí, que é muito perigosa. 

- Chama Covid. E não é gripezinha, não, viu? Mas aqui não tem nada disso não. Graças a Deus.

A moça que me corrigiu me deu o braço, enquanto aquele outro cara seguia abraçando pelo ombro. Ambos me conduziam no meio do que, de repente, já era uma quase multidão. Rostos que iam ficando cada vez mais familiares. Os de meus acompanhantes, inclusive. Era meio angustiante, mas a moça tentou me consolar.

- Calma. Tá confuso, né? Eu lembro quando eu cheguei. Estava igualzinho a você. Mas a cabeça melhora rápido.
- Você lembra, Lenita?
- O quê?
- Se você já cagou hoje!?

Implicavam muito um com o outro. Ao menos, os dois riam um da bobeira do outro. Parecia implicância antiga, coisa de irmão. Pessoal, mas eles me faziam, de certa forma, sentir em casa. Eu confesso que... estranhamente, é difícil explicar... mas eu tava com saudades, não sabia exatamente de quem. Mas iam surgindo nomes. Rostinhos. Giovanna. Diego. Luiza. 

- E tem também o Rafael, pôrra! São seus netos.
- Calma, não espera molhar o bico. E me respeita que eu sou mais velho que você, oh Burro!

Olha pessoal, me deu aquele estalo. Lembrei dele. Vocês acreditam? Aquele bigode, aquela boca suja. Pessoal, era o Wilson! Meu irmão mais novo. E a moça, sabe? Era a minha irmã mais nova, a Lenita. Caramba, não via esses dois havia tanto tempo. Fiquei até emocionado na hora. 

- Esse pessoal todo veio aqui te receber, Bininho.
- Puta merda. Você demorou demais, pôxa!

Fiquei meio tonto, olhando em volta. O cenário daquele reencontro realmente mudava. O tempo todo. Tinha hora que parecia que a gente estava no salão do Clube Leopoldina. Noutra hora, era o Cutubas! Eu piscava e, do nada, era como se estivéssemos todos na Rua do Catete. Ou na subida da Rua Santa Cristina. Ou na rua da Glória. Ou em JF. Ou em BH. 

Estávamos em toda parte e em bom lugar. 

A sensação era de paz, meus queridos. Me senti muito bem acolhido. E aquela pequena multidão, eu fui entendendo. Eram gente amiga, irmãos por afinidade, que fizeram questão de vir me receber. 

- Demorou, hein, Colibri?!

Era o Ciro Monteiro, tocando sua caixinha de fósforos, chamando pra tocar violão. E o Licinho tocando Tuba, vestido de Rei Momo. Com o Horácio, claro: um não anda sem o outro! Rostos, muitos rostos, ganhando contornos de saudades queridas. Num cantinho, eu juro que vi!, os Anjos do Céu ensaiavam uma vocalização e me chamavam pra acertar a harmonia. Fiz assim com a mão pra eles: já vou! Já vou! 

E vocês nem imaginam: havia um palco montado e era a Leopoldina Orquestra completa. Tocando lindamente, em minha! minha homenagem. Dá pra acreditar nisso?! E o crooner?! O sujeito era muito bom.

- É o Orlando Silva, pôrra!

Era mesmo. E o Wilson continuava o desbocado de sempre.

- De vez em quando o Orlando aparece pra cantar com eles, Bininho. Mas sempre disse que precisa de dois violões pra acompanha-lo.

Entendi nada. Já tinha um lá no palco, ué. E tocava pra caramba. 

- É o papai, Tio. O Bebem.

Não sei o que me fez chorar. O sorriso da Delizete, carinhosa e tão feliz de poder me abraçar quanto eu a ela novamente, ou se chorei por reencontrar meu mestre/cunhado, fazendo o que mais gostávamos. 

Mal podia esperar pra subir lá e acompanhá-lo. 

Música!!! Queridos, eu só pensava em como seria bom cantar novamente com eles. Todos eles. Com a Maria , o Zezé, o Peroba, a Doce, a Nina, o Belinho, o Palimércio, ao lado de seus pares eternos. Sim, eu me lembrei de tudo. 

E de todos. 

Inclusive de vocês, filhos queridos. Luciana e Robson. Mandem meu carinho especial ao Fagner. Digam pra Elo que já encontrei o Bahia e até tomamos uma cervejinha juntos. Nem sabia que ele tinha viajado também. Era o único da minha turma aqui com uma bandeira do Atlético.

E o que dizer pra minha doce Maria Dênis? Ela deve estar muito triste, não é? Por favor, cuidem dela. Falem que já encontrei com a Dona Filhinha aqui. Ela está ótima e manda beijos pra todos. Sua mãe vai adorar saber. 

Quanto a mim, estou muito bem agora. A programação da semana promete ser intensa, em minha homenagem. Podem ficar com inveja: amanhã tem show com Os Cariocas, Cartola e Nelson Gonçalves. Uhm!!! Parece que o Tom Jobim e o Vinícius vão dar uma canjinha - o Ciro me garantiu.  Gente! eu me lembro de cada acorde, cada posição no violão, todas todas as melodias! 

Minhas lembranças voltaram! E querem saber? não são mais lembranças. São outra coisa. E estão por toda parte. É como se elas, minha família -aqui e aí - e eu, fôssemos um só. Enfim, TODOS juntos. Pra quantas fotos quisermos. Com todas as canções necessárias.

Para sempre! 

Com amor

Albino 

 

Ps: acho que vou escrever mais um livro. Tô me lembrando de tanta coisa! Alguém conhece um bom psicografador? Deixa. Eu me viro.

20/07/2020

INVISÍVEL

 
Sentia-se um rejeitado.

Desde miúdo. De pai e mãe, pra começar. Eram mais velhos. Ele, fruto dessa união tardia. Entende? Uma criança que carecia da paciência de pais mais jovens? Mas, coitados. Trabalhavam muito. Não tinham muito tempo pra ele, não.

Tornou-se um infante criado ora na frente da TV, ora mergulhado em Lobato, ora nas HQs.

Foi onde aprendeu a seguir em frente, inventando mundos. Primeiramente com papel, caneta e tesoura. Era como se, na vida de verdade, não fosse possível ser feliz. Aquela infância solitária seria apenas o começo.

Os fatores ambientais não o ajudaram. Família simples, pouco viajada. Conheceu pouco a vida fora de casa. Sabia mais do mundo e da vida pela TV, depois pelo cinema. E não havia muito o que dizer sem que se sentisse um idiota. Ah! Por não ter vivido aquilo tudo mais de perto? A roda de pessoas próximas era, por isso, pequena.

Não se dava bem em grupos grandes, entende?

Às vezes, tentava superar essa limitação fingindo ser quem ele não era. Aprendeu de criança a inventar mundos que lhe coubessem. E assim fez, inúmeras vezes, para enganar uma incapacidade nata de conviver. Na verdade, até esperava que isso o aproximasse mais de outras pessoas. 
Mas não perto o bastante.
 
Nunca se encaixou em nenhum grupo, na verdade.

Tinha quatro, cinco anos, quando foi matriculado na escolinha. E já sentia-se rejeitado pelos coleguinhas do colégio. Certeza que não gostavam dele, muito, não. Acostumado só a ele mesmo com os pais, seria um processo mais difícil esse, o de aprender a conviver.

E foi mesmo.

Para sempre. Repetia-se a cena doméstica: não era incomum vê-lo brincando sozinho, pelos cantos. Mesmo os seus "amiguinhos" favoritos demonstravam ter outros favoritados. 
 
Recorreu à imaginação, mais uma vez. 
 
Demonstrava algum interesse pela escrita, algo que poderia lhe render alguma atenção. Mas sempre havia alguém que lhe superasse nas classes de redação.

Muito frustrante.

Conheceu a paixão precocemente. Na mesma fase de pré-escola. Mas a menina mais linda da sala, coitado, nada quis com ele - claro! Crianças! Só que... nas contas do bardo... rejeitado, mais uma vez! Psicologicamente, aquilo foi para sempre. Desde então, passou a colecionar amores secretos.

Fugiu para o inconsciente.

As paixonites, as que de alguma forma demonstravam interesse - ainda que não romântico, nem carnal. Pois ficava a admirá-las, à distância. As considerava inalcançáveis. Estavam sempre numa espécie de pedestal imaginário. E ele no chão, venerando-as. 
 
Mal subia degrau, não se aproximava com frequência, com medo da negativa a seus sentimentos. Temia sempre a volta da tal da rejeição. Aumentava nele aquela sensação de que nasceu de uma sucessão de erros. No tempo errado, na hora errada. Um equívoco.

E assim cresceu.

Tornou-se um adulto solitário, ainda que em excelente companhia. Um na multidão, tipo. E era como se fosse bipolar - se numa hora estava bem, brincando, sendo agradável, gentil, companheiro; na outra agredia quem estivesse por perto. Era grosseiro, estúpido mesmo! Explosivo. Como se fosse incapaz de ter um bom juízo das coisas.

Pressionado, se punha na condição de vítima das circunstâncias.

E a família não tinha saco pra isso. Muito menos os parcos amigos. A verdade é que, por isso, sentia-se MUITO só. E a vida inteira esperou por um jeito de amar, só que do tipo que não existe na Terra. 
 
Amor de verdade, pra ele, deveria ser algo poderoso. Arrebatador. De cinema, literatura. Coisa inventada, sabe? Não havia como. Ele, talvez, não houvesse também.

Aceitou que seria mesmo uma espécie de homem invisível.

Um dia chegou a imaginar que seria um grande personagem para uma crônica. Enfim sua história, talvez, inspirasse outros. Que ajudasse alguém a não se sentir tão solitário tc etc etc. Tsc. Mas não durou muito.

Como disse, bem...

Era um tipo desinteressante por demais, realmente sem graça. Quem escreve pros outros quer reconhecimento, quer se destacar com grandes personagens. De preferência, vitoriosos, capazes de grandes reviravoltas. Mas aquele? Cuja família não se interessava, nem amigos, nem  amores? Escrever o que, cara?

Que leitores se habilitariam a segui-lo, diga? 

O autor percebeu o engano meio que tardiamente. Até tentou escrever algumas linhas, desenvolver um perfil psicológico que - talvez - fizesse o personagem ganhar alguma densidade. 

Não. 

Parecia mais merecedor de pena. 

Mas uma dó mendigada, sabe? 

E será que não havia nada de bom que valesse a pena nele?

Nada, nem um respiro para tanto sofrimento?

Foi cansando daquele sujeitinho, daquela vida medíocre dele, daquele vazio todo. Daquele vitimismo bobo, infantil, de alguém já tão velho de guerra. Realmente, um engano. Esse não merecia. Chegara ao fundo do poço. Enfim.

Rejeitado até aonde se escondeu a vida inteira.



por Bob LeMont

03/06/2020

DONA NONOCA E A GAVETA


Não sei se já me apresentei!

O nome é Lemont. Bob LeMont. Indonésio, mas nascido em Andorra. Sim. Minha vida é estranha mesmo. Enfim! Sou jornalista, roteirista e dublador, talento que herdei de vovô. O velho Ted trabalhou intensamente nos filmes de Chaplin e Buster Keaton nos anos 1910. 

Infelizmente, estamos desempregados desde o surgimento do cinema falado.
Nem por isso me afastei da chamada Sétima Arte. Tenho bons relacionamentos no meio. Conheço Quentin Tarantino, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola. Eles que não fazem ideia de quem eu sou, mas isso não diminui em nada meu talento. Lamentavelmente, também não agrega coisa alguma. Me dou bem com os bilheteiros.

Entendam que me esforço dentro da profissão de roteirista. Meu cinema é autoral, trabalho de forma bem hermética. Meu quarto na pensão da Dona Nonoca não é dos maiores, então acostumei à falta de espaço. E de dinheiro também. 

A Dona Nonoca não. Ela insiste em cobrar o aluguel. Velha insensível. E ingrata. Ninguém aguentaria dormir naquele cubículo fétido e sujo por seis meses como eu. Hoje ele tem meu toque pessoal. Quando cheguei, o quarto era apenas sujo.
Tenho muita coisa na gaveta. 

Difícil é encontra-la. Costuma estar na direção da axila direita. Meus instintos me guiam. Pra tudo. O quarto não tem luz. Não acho confiável escrever à luz de velas, portanto só escrevo de dia. Sou assim, das antigas. Gosto de usar a velha máquina de escrever. Tinta e papel de verdade. 

Escrevo por horas e ponho na gaveta. Quando chega a noite. Alguns dos meus melhores textos vivem lá. A gaveta. Histórias incríveis. Eu começo, paro. É tipo um... um... ah! um Filé à Chateaubriand. Não faço ideia da metáfora, só me bateu uma fome terrível. Tenho gatilho.

Meu roteiro mais recente tem como personagem único um cara. Um escritor. O filme começa com plano geral. Um quarto pequeno, apertado. Uma mesinha, uma cadeira. Uma portinha no canto. O escritor entra pela porta. Puxa a cadeira. Senta-se diante da máquina de escrever que estava sobre a mesinha o tempo todo. Nela um papel. Em branco. 

O escritor permanece parado por um tempo, observando aquele pedaço de folha vazio. Takes diversos. Rosto, máquina, papel, rosto de novo. Pensando, pensando, pensando. Rosto, máquina, papel. Até que ameaça começar a escrever. É quando a tela escurece rapidamente. E fica assim por 3h43. Tela escura. Nem um som. Sobem os créditos. Você não leu errado, não. Tela escura. Nem uma palavra, nem um som. Uma homenagem a... desculpem, fiquei emocionado.. homenagem ao Vovô Ted LeMont...

Esse é o arco fundamental de FADE IN, meu projeto do momento. Uma imersão na mente de um escritor em crise criativa. Imagino silêncio na sala de projeção, que sendo substituído por crises de tosses nervosas, depois pedidos de pshhhhhh, evoluindo para reclamações brandas. Até que, em algum momento, alguém da plateia vai começar a berrar QUE P@#$RR%$&A É ESSA? Cara! Cinema imersivo. O que acontece no cinema é o filme. A própria encarnação da dor do escritor, sua mente vazia, num limbo sem fim, escutando as vozes interiores que lhe condenam. Algumas xingam. Nomes horríveis. Isso é arte! 

Está na gaveta. Um grande filme, com certeza. 

Mal terminei de escrever e já tenho ideia da sequência. O filme começa em total silêncio. Total. A sala totalmente escura. A primeira cena idem. Assim como a segunda. A terceira. E assim por diante. Serão 2h42 minutos de tela preta. Pretinha, como a asa da graúna. Até que no minuto final, faz-se uma fusão para o escritor do primeiro filme, O ambiente é o mesmo - plano geral, ele diante de sua máquina de escrever e aquela mesma folha de papel. Mas ela não está mais em branco. A câmera se aproxima lentamente. Percebemos que a folha está preenchida. Um grande zoom e a audiência consegue finalmente ler... 

FADE IN 2. 
A tela escurece. 
Sobem créditos. 
A Dona Nonoca ainda vai se orgulhar de mim! Onde quer que ela esteja. Faz três dias que não bate na minha porta pra cobrar o aluguel. O que estará aprontando? 

FINAL ALTERNATIVO
Pensando bem... talvez... TALVEZ! eu seja um personagem de mim mesmo e esteja vivendo metaforicamente em uma gaveta escura, simbolizando meu próprio medo da rejeição do público. Mas à espera de quem me leia e não me cobre por isso. Uhmmm. A ideia é boa. Mas. Sic. Não sei se daria um filme.
Talvez um mini-conto. 

Eu disse TALVEZ?

por Bob LeMont 

01/06/2020

MARTIN


Entra no carro pela porta traseira, saudando o motorista educadamente.

- Boa noite, tudo bem?
- Boa noite. Vamos para... - responde, secamente, checando o intinerário na tela do celular, colado no painel do carro.
- ...pra Cidade Alta! Eu tenho méd... - insiste em puxar papo, mas é interrompido pelo tom quase robótico do cara do Uber.
- ... Cidade Alta... ok... deseja que ligue o ar condicionado? 
- Não, tudo bem... gosto das janelas ab...
- Tudo bem.

E saem.

Não gosta de conversar com o passageiro. Em especial os que pega em regiões como aquela. Pessoas ricas, que adoram ostentar e arrotar posição. Aprendeu dirigindo para o aplicativo que a distância social aumentou: os malsucedidos na vida tornaram-se motoristas particulares de baixo custo. Um prato cheio pra essa turma de ar superior destilar todo seu preconceito e desdém. Ele costuma esperar um pouco antes de interagir e não ter que passar por esse desgaste. 

Mesmo que o passageiro tivesse um rosto conhecido.

Fica aquele silêncio incômodo a bordo. Nem uma música no rádio, nem uma conversa fiada pra quebrar o gelo. Nada. Apenas o vento no rosto e o som do trânsito das 19h. Tenta a estratégia de sempre pra conseguir a simpatia do condutor. Olha pro lado de fora e diagnostica:

- Rapaz, esse tempo tá maluco.

Silêncio. Pressegue.

- Mais cedo tava um calor e agora tá ameaçando de chover, hein?
- Rsdtrgsbct!

É mais ou menos esse o som emitido pelo motorista do Uber em resposta à suspeita meteorológica de seu passageiro. E agora? O sujeito terá desdenhado dele? ou apenas arranhado um pigarro persistente na garganta? Difícil de dizer. Pensa:

- Quem esse morto de fome, motoristinha de aplicativo escroto, nesse carro bosta, feio, sujo e desalinhado, pensa que é?

Arrepende-se em seguida, também mentalmente. Não, não. Aquele não era mais ele. Aquele sujeito prepotente de antigamente não existia mais.

- Sempre a mesma conversa sobre o clima... - pensa o motorista, sem paciência - eu finjo que respondo qualquer coisa... eu tô aqui pra dirigir, não pra fazer previsão do tempo...

Uma última tentativa de aproach.

- Elísio, né?
- Meu nome? Sim.
- Não é muito comum, não.
- Não.
- Pois é, eu tive um colega de escola com esse nome.
- Mesmo?
- É.
- Eu nunca conheci ninguém com o mesmo nome que eu.

Percebeu que o motorista do Uber e ele deveriam regular a mesma idade. Uns 40, 40 e tantos, um pouco mais surrado pela vida. Não reparara bem no rosto dele mas, pensando bem, parecia mesmo com alguém conhecido.

- Eu estudei no Instituto Librorum, ali no bairro...
- ...eu sei onde fica! Morei lá perto, Renato...

Respira fundo, surpreso.

- Não é Renato? É o nome que consta no seu cadastro...
- ...é Senhor Renato! - corrige, demonstrando desagrado pela "intimidade".
- Ah, desculpe. "Senhor" Renato... - repete, dando tom irônico às aspas. E complementa em pensamento: "Senhor cretino!"

Seguem adiante.

Olhando atentamente para o passageiro pelo retrovisor, Elísio lembra de um Renato que o perseguiu durante anos, na escola que frequentava como bolsista. O Renato que pertencia a uma classe social mais alta, o Renato que humilhou ele diariamente durante muito tempo diante de todos os colegas. Que fazia todo mundo rir das roupas baratas de loja de departamento que ele vestia, dos tênis mais em conta que calçava. O Renato que fazia questão de mostrar ao Elísio que ele não era bem vindo ao mundo dos ricos.

O mesmo nome do passageiro.

- Olha, meu velho... sabe? - disse o cliente, num rompante - me perdoe você. Eu me distraí. Fui ríspido e arrogante, não precisava.
- Ok... - respondeu, com certo desdém, conferindo o GPS e seguindo em frente.

Distraído, Renato não percebe o olhar do motorista pelo retrovisor.

Não tira da cabeça o Elísio do Librorum, que conheceu quando criança. Eram de turmas diferentes, mas guardara aquela recordação do nome. Será ele mesmo? Não vê o cara há anos. O pai de Elísio trabalhava para o pai de Renato. Era seu motorista particular. Lembra do velho reclamando de que o empregado adorava circular com o carro como se fosse dono. Uma vez, se exibindo para beldades, bateu no meio fio. O pai dele ficou uma fera e acabou demitindo o sujeito. Renato nunca mais viu nem o motorista na casa e nem o filho na escola.

Trovão. Pingos de chuva.

- É, parece que São Pedro resolveu não ficar só na ameaça! - brinca, tentando fechar o vidro traseiro, para evitar de molhar. Sem sucesso. O mecanismo teria de ser acionado pelo motorista. Ficou aguardando, mas ele parecia focado no trânsito.

Elísio teve problemas com o pai desempregado, alcoólatra e com histórico de suicida. Tentara três vezes, sem sucesso. Frustrado, batia na mãe e nele, que mesmo adolescente tentava defendê-la. Um dia ela foi-se embora e ficaram apenas os dois no apartamento de quarto e sala na Cidade Baixa. Tornou-se a vítima preferencial, apanhando regularmente. Mas no primeiro mês como adulto, Elísio decidiu dar um basta naquela humilhação. Espancou o velho. Bateu muito, até deixa-lo desacordado. Depois carregou o velho até a garagem do prédio e o jogou no porta-malas do carro. 

- Quer que feche?
- Oi?
- O vidro, senhor Renato. Vai chover.
- Sim, grato, não consigo daqui! - sorrindo - E não me chama de "senhor", por favor... nós temos a mesma idade, acho... 40?
- 39.

Renato sabia que precisava mudar. O que estava acontecendo com ele era um aviso. Ele foi uma pessoa muito ruim, muito apegada ao dinheiro. Tenso, tenso. O médico disse que só falaria do resultado do exame pessoalmente. Não devia ser coisa boa. Estava desatento, nervoso, daí a resposta atravessada. Tudo fruto de uma ansiedade fora do comum de conversar. Mas a grosseria não seria mais o tipo de resposta que daria às pessoas. Ele iria mudar. Se o médico lhe desse uma resposta positiva, que a dor no estômago não é nada demais, prometera ser mais gentil com as pessoas. Ainda mais com um provável amigo de infância. Seria ele? O Elísio? Aquele moleque com quem ele costumava brincar?

- Pior não é a chuva... é o trânsito... eu tenho horário marcado no médico às 20h...
- Eu conheço um caminho mais rápido, pode deixar.
- Não é melhor seguir o GPS?
- O senh.. você!... vai chegar a tempo, pode confiar.

O motorista só pensava no Renato da escola. O cara que destruiu a autoconfiança daquele menino cheio de sonhos. Que teve coragem de imaginar que finalmente estudaria numa escola particular, onde começaria a realizar o sonho de ser advogado. Mas ele se tornara um covarde, incapaz de responder às provocações daqueles meninos e meninas mimados. Eles sabiam que Elísio pertencia a outra classe social e falavam pelas brincadeiras grosseiras de Renato. Filho do homem que dispensara o pai dele, que passou a beber e agredir sistematicamente a família. Ele, o covarde, não pode fazer nada para manter a mãe em casa. E que continuou apanhando, apanhando. E que se vingou do pai agressor na covardia, um bêbado indefeso.

Tudo culpa do Renato.

- Você fazia o que antes de ser Uber, Elísio?
- Eu? - diante do gesto de humildade anterior, resolve - enfim! - responder com mais de duas palavras - Sempre mexi com transporte mesmo. Trabalhei pra uma empresa por 20 anos mas ela faliu nessa crise daí. Então virei Uber.
- Entendo.
- Eu até comecei a fazer Faculdade de Direito, mas não consegui concluir o curso.
- Seríamos colegas! Eu sou advogado.
- Que ótimo. De que área?
- Criminal.
- Já deve ter ouvido histórias terríveis.
- Não é uma vida tranquila. Muita ameaça. Por isso só ando armado.
- Nossa, eu também. Já fui assaltado tantas vezes.

Silêncio.

O Elísio que conhecera no colégio não teria coragem de empunhar uma arma. Era um menino muito simples, alegre, brincalhão. Tinha até um pouco de inveja dele. De como ele se comunicava bem com os outros jovens. De como conseguia prender a atenção de todos contando suas histórias divertidas. As meninas só se aproximavam dele porque tinha dinheiro pra leva-las ao cinema. O Elísio não precisava disso, tinha uma lábia absurda. Era um magricela, se vestia mal à beça, roupa barata, de loja de departamentos. Mas era um conquistador nato. As meninas é que pagavam tudo, porque o Elísio não tinha um centavo. Nunca. Ele lembra de cair na pele do colega por causa disso. Hoje chamariam de bullying. Mas ele prefere pensar que, naquele tempo, todo mundo pegava no pé de todo mundo. E que ninguém ficou maluco nem violento por causa daquilo. Esperava que, pelo menos, não o Elísio.

Porque ele tem uma arma.

- Seu Renato, o senhor não se assuste. Eu vou passar no meio da favela pra cortar caminho.
- Favela, Elísio? Uma hora dessas?
- É firmeza. Minha área, conheço todo mundo.

Elísio se virou bem na vida. Descobriu que nem todos os mimados ricos da escola eram canalhas. Ficou muito amigo do Ciro, um sujeito tão alto quanto bobalhão. Se divertiam muito juntos. Ele ajudava tanto o colega de classe com o dever de casa que o Ciro, em agradecimento, conseguiu um emprego pro Elísio na empresa do pai. Mexia com exportação, algo assim. E o Elísio virou motorista de confiança, ganhando um bom salário. A empresa ficava nos fundos do Colégio Librorum, área nobre da cidade. Mas morava longe e isso atrapalhava bastante, porque era muito acionado pelos patrões. Como ganhava bem, tinha o suficiente alugar um apartamento pequeno por ali.

- Você não disse que morava perto do Librorum? - quis saber o desconfiado Renato, sem deixar de prestar atenção no movimento suspeito naquelas vielas estreitas.
- Ah! Isso foi quando era mais novo, né? Depois que eu saí da empresa onde eu trabalhava, vim morar aqui na comunidade. Fazer o quê? Mas tudo bem. A área tá tranquila a essa hora. Só não pode se meter com quem não deve.
- Tem certeza?
- Um carrão desses aqui? Se fosse gente de fora já teriam cercado pra ver qual é. Você é criminal, você conhece quebrada.
- E como você faz?
- Eu levo a mãe do dono da boca na fisioterapia toda segunda, quarta e sexta. 0800.

Elísio sempre imaginou o que teria acontecido com aquele Renato. Que o carinha provavelmente continuava morando numa tremenda mansão, tratando mal os funcionários, sendo arrogante. Imagina que o cara que fez ele sofrer tanto com bullying deve mesmo ter se tornado um advogado canalha. Desses que defende os políticos corruptos de sempre. "Alguém precisa punir esses desgraçados que dão moral pea bandido", pensa, levando a mão à arma que traz presa na canela, escondida sob a calça que veste.

- É, eu só não imaginava ver tanta gente mal-encarada... - confessa Renato, ainda olhando em volta.
- Quem vê cara não vê coração, meu amigo!

Só precisam circular bem devagar, pra não serem confundidos nem com policiais nem com milicianos. Renato mais e mais incomodado. E se for mesmo o Elísio? Ele sabe da história de família que tem, do berço onde nasceu. "E se ele tiver se tornado um desses bandidos que se fingem de motorista de aplicativo pra assaltar?", pensa. Desses que atende a um chamado numa área de luxo, de repente entra num aglomerado, finge que tem um problema qualquer no carro e pimba! A casa cai. Instintivamente, leva a mão à arma escondida sob o paletó.

- Não é mesmo? Tem gente que finge ser o que não é... - ironiza Renato.
- Verdade e tem gente que acha que é alguma coisa só porque tem dinheiro e posição... - devolve Elísio, sem tirar o olho da pista. A chuva aperta.

Silêncio.

Freada brusca. Um estrondo! TÁ!!!

Renato sente o solavanco. A dor no peito. Não tem reação diante do susto. Sente o coração disparar. Em seguida, averigua a roupa. Teria sido levada a cabo por acidente a sentença de morte que receberia do médico? Nas mãos de um merda de ladrão fingindo ser um motorista de aplicativo que, supostamente, foi colega de escola dele na infância?

Elísio sente um pouco a pancada no peito por causa da freada. Batera de leve no volante. Sentia também um pouco de taquicardia, diante da reação rápida. Ainda ofegante, tira o cinto de segurança e olha para o banco do passageiro logo atrás. Percebe a expressão de perplexidade de Renato. Os dois trocam olhares por alguns instantes, antes que Elísio resolvesse falar alguma coisa

- Senhor Renato, me perdoe.
- Cara, o que foi...
- ... quando eu vi o buraco, ele já tava em cima... tive que frear, aí passei com a roda e a porcaria do pneu estourou... 
- ...cara que...
- ...susto, sim... me desculpe... o buraco tava cheio de água...
- ...claro, cara... claro.. eu... - percebe que a dor no peito foi da freada e o peso dele indo contra o cinto de segurança.
- ... olha, eu nem vou cobrar essa corrida não... o senhor pode ficar tranquilo...
- ...não, eu faço questão, você não tem culpa nenhuma...
- ...eu vou acionar outro motorista aqui pra concluir o trajeto... por minha conta, ok? - diz, já fazendo uma ligação.

Está vivo. É o que importa ao Renato. Respira fundo. Reflete. Talvez aquilo tudo fosse mesmo uma segunda chance. Não fora nem assaltado, nem sequestrado, tampouco baleado. Tem a certeza de que Deus é uma entidade com um humor muito peculiar e que talvez esteja fazendo questão de faze-lo passar por uma situação dessas. A ironia da situação. Os preconceitos de sempre, ante estereótipos. O passado logo ali, no banco da frente. Para que possa pedir desculpas pelo que ele foi um dia e que não quer ser nunca mais.

- Toc, toc, toc

Um homem bate no vidro, assustando Renato mais uma vez. Elísio o tranquiliza. Há alguns anos, ele teve muito ódio no coração e quis muito se vingar. Esteve muito perto de cometer um assassinato. Mas no trajeto, entendeu que sujar as mãos com o sangue de quem o feriu tanto não iria mudarem nada o que aconteceu. Pior: iria torna-lo no próprio monstro que queria eliminar. Foi o que o impediu de cometer um crime anos atrás. E que deu a ele o real sentido do perdão.

- Tudo bem, seu Renato. Esse aí é meu pai. Ele é motorista de Uber também e vai levar o senhor até lá.

Renato sorri. Agradece. Faz questão de pagar a corrida, diante da insistente negativa do piloto. Tira cem reais do bolso e entrega a Elísio. O motorista sorri, ainda sem graça, mas agradece. Sabe que precisa do dinheiro.

- Só mais uma pergunta...
- Sim?
- Desculpe, mas eu preciso saber. Você é o Elísio que estudou comigo no Instituto Librorum nos anos 1990?

Elísio sorri.

- Eu morei perto, meu amigo. Mas nunca estudei lá, não.

Renato e Elísio, mais uma vez, trocam olhares. Agora mais gentis. Sorriem um pro outro. O advogado, por instantes, viu nos olhos do motorista aquele Elísio de quem tinha raiva, bem sucedido com as meninas, apesar de pobretão. O Elísio que tantas vezes desrespeitou por não ter dinheiro mas ter personalidade. Por causa disso, começou a tratar mal quem não tivesse o mesmo status social. Puro despeito, falta de humanidade da parte dele. Não quer chegar no consultório médico e receber uma notícia ruim sentindo esse peso do passado sobre suas costas.

Já abrindo a porta do passageiro para mudar de veículo, resolve voltar-se rapidamente.

- Obrigado, caro Elísio. E me perdoe, ok?
- Pelo quê? Eu que...
- ...apenas me perdoe, por favor...
- ...mas?..
- Por favor!

Vê nos olhos daquele Renato passageiro, um Renato que sempre esteve com ele na memória. Um garoto mimado, violento, que destruiu a autoconfiança de um garoto cheio de sonhos. Mas se ele pode perdoar o pai, que foi ainda mais estúpido, que destruiu o lar em que vivia e espancou e espantou a mãe dele, o último refúgio de amor de sua vida miserável... se ele pode perdoar aquele pai... sim, ele poderia perdoar aquele Renato...

Nem que fosse um... passageiro!

- Perdoo, sim. Imagina! - sorri - Claro.
- Muito obrigado. Significa muito pra mim.
- Se cuide, senh...
- ... olha!..
- ...se cuida, Renato!
- Você também Elísio.

Trocaram cartões comerciais, antes de Renato embarcar no carro do pai de Elísio e seguir viagem. O motorista suspirou. Pegou o telefone e digitou um nome na memória.

- Oi, mamãe. Não, tá tudo bem. O Jorge tá por aí? Pede pra ele descer aqui pra oficina pra me ajudar, por favor? O pneu do carro estourou... não, aqui na entrada da vila mesmo... mas que padrasto é esse que recusa ajuda assim??? - brinca, pois sabe que o novo companheiro da mãe logo aparecerá para ajudar. Afinal, são vizinhos, e o sujeito é o dono da única oficina da favela.

Dias depois, por curiosidade, Elísio está mexendo no celular e resolve acessar a rede social do escritório que estava no cartão daquele Renato advogado. Lá, Elísio encontra uma mensagem aos clientes e amigos. Renato avisa que precisará fazer uma cirurgia urgente para retirada de um tumor. Que os médicos acham que não é maligno, mas é algo que ele acredita ser uma parte ruim dele, que precisa ser retirada.

- Todos nós temos direito a uma segunda chance para consertar o que a vida fez estragar dentro da gente. Nos resta, no mínimo, tentar. Um gesto, nem sempre tão simples, mas que pode ser muito significativo: o perdão. O perdão sincero é algo que pode ser incrivelmente transformador. Tanto pra quem perdoa, quanto pra quem é perdoado. Como disse Martin Luther King: "O perdão é um catalisador que cria a ambiência necessária para uma nova partida, para um reinício."

Elísio sorri mais uma vez, balançando a cabeça.

- Aposto que vai fazer uma selfie no hospital. Esse povo rico é exibido demais mesmo... - comenta, ironicamente. Mais um chamado no aplicativo. Um novo passageiro o aguarda. 

Quem sabe a história que vai encontrar adiante.

por Robson Leite

22/05/2020

MONSTROS



Monstros. 

Eles não escolhem ambiente pra viver: pode haver um na sua rua, na porta vizinha e, certamente, tem um aí de olho nas suas redes sociais neste exato momento. À espreita.

Um monstro se alimenta de fracassos. A família fracassa em não oferecer exemplos e limites; o Estado naufraga na incapacidade de gerir saúde, segurança, justiça e educação; as igrejas estão tão atentas aos poderes e lucros que esquecem as almas; a vida privada se deixa levar por mesquinharias, baixarias, frivolidades, vulgaridades, mentiras. 

E os monstros só crescendo. Porque, diante disso, ora! não tem nada a perder. Nada que valha a pena. 

Monstros não se importam com ninguém, só querem sobreviver. Eles semeiam o ódio, colhem o caos, e são - ao mesmo tempo - fruto dos dois. Podem prendê-los, podem matá-los, mas eles continuam vindo. 

Os monstros não tem idade. São moços e velhos.  Pobres e feios. Lindos e ricos. São políticos, eleitores, empresários, empregados, desempregados. Comem de tudo, se locupletam e cospem o que não cabe mais. O ambiente de restos favorece ao aparecimento de mais e piores monstros. 

É isso, um monstro é qualquer um. É uma doença social, que se espalha pelo fracasso da ação preventiva. Fracasso por falta de empenho, de projeto, de competência, de amor. Esse é o local secreto, o berçário deles. O fracasso. É o fracasso que deve morrer. 

Para matar os monstros de fome. 


por Bob Lemont

21/05/2020

CHEETOS


 
- Cara, pega um Cheetos aí! - sugere, tentando tranquilizar o clima pesado.
- Eu vou me embora... - diz, aos berros, segurando a mochila com o pouco que conseguiu juntar após quase entrar em colapso nervoso. Um notebook, cabos conectores diversos - inclusive para celulares - camisas limpas, algumas cuecas, meias. 
- Fica calmo...
- Calmo? São 60 dias dentro de casa. Essa quarentena está me enlouquecendo.
- Ahahah... dois meses em casa, saudável.. agora prefere ir pra rua, ficar exposto pra Covid-19?
- Sim e nada do que você disser vai mudar o que eu penso... - retruca, ainda agitado, teimosamente, enquanto procurava as chaves do apartamento.
- Você é do grupo de risco, cara. Tem asma, pressão alta. Não duvido que esteja diabético, não vai no médico faz tempo.
- Não paga pau... você sabe por quê...
- ...eu sei e não estou censurando ninguém... estou querendo acalmar você, pra gente poder conversar e colocar as ideias no lugar...
- ...eu não quero conversar! Eu quero sair, ver a vida, ver pessoas...
- ...você vê pessoas quando vai ao supermercado!!!
- AS MESMAS PESSOAS??? A Ana da Dona Lucélia?? O Pedro dono do bar??? Ah!!! O velhote do 305??, que nem deveria estar na rua, e encontrei com ele mais vezes nas últimas oito semanas que encontrei com meus pais! CHEGA!!!
- Para de se fazer de vítima.
- Eu vivo aqui, sozinho...
- Eu também!
- Você não conta.
- Fazemos ginástica juntos, vemos LIVES na internet juntos... que mais?
- Cerveja! Muita cerveja! E Netflix... e Amazon... e Globoplay... e mais cerveja...
- E Cheetos!
- Cheetos... 
- Ora, ora. Está claro! O Home Office é uma bênção do capitalismo. Tempo de repaginar. Se conectar a novos prazeres, administrar seu tempo melhor e sem depender dos outros...
- ...estou só! Preciso de sexo! Preciso dos meus amigos! Da minha família, caramba! 
- Saia e se contamine. Onde você gostaria? Na maçaneta da portaria? No corrimão da escada do ônibus?  Na banheira do Motel?
 - Eu... não ando de ônibus...
- ...encontre amigos, família, transe e passe o vírus adiante.
- Dane-se!!! Tchau!!! - ameaça sair, colocando a tetrachave na porta
- Está sendo infantil. E egoísta. 
- As duas coisas... e daí?.. se eu quero minha mãe...
- Freud explica!
- Não desse jeito! Ei!!! Eu quero abraçar minha mãe. Meu pai.
- O maior gesto de carinho seu para com eles agora é ficando em casa.
- Mas eu...
- Guarda a mochila? E essas roupas  pessimamente dobradas? vai ter que passar tudo de novo...
- É roupa preta. Nem aparece sulco nenhum... - responde, já tirando o computador e colocando sobre a mesinha de sempre. A cadeira da sala já até ganhou a forma de seus glúteos. O peso da gordura, acumulado nos últimos dias, ajudou a fixar. 
- Pega um Cheetos e relaxa. 
- Cheetos não me relaxa. Cheetos é minha reação ao estresse. É a minha... fuga...
- Ele é consequência, não causa. Come pra encontrar aquele lugar de paz na infância e tal. 
- A segunda tirada psicológica de hoje. Desde quando você é psicanalista? 
- Você precisa de alguém com a cabeça no lugar, senão vai acabar pirando nessa quarentena.
- Ah... - leva um susto.
- O quê?
- Acabou o Cheetos...
Silêncio.
- Cara, você precisa sair! - diz, alterado, mudando totalmente o tom calmo. 
- Mas você disse... - ele parece confuso.
- Eu sei o que eu disse. Não toque na mochila! Vá, mas volte. É só mais uma ida ao Supermercado, simples. Tá liberado. 
- Eu não quero ir. Não quero mais Cheetos.
- É claro que você quer! Nós precisamos dele. 
Silêncio.
- Tá. Mas vou comprar só dois pacotinhos. Do pequeno.
- Do médio!
- Tá.
- Você precisa dar uma volta... 
- Eu preciso MESMO dar uma volta. Acho que tô pirando com isso tudo. Crise sanitária, quarentena, as merdas que aquele cara diz. Não tô bem.
- É. Busca um Cheetos pra nós. 
- Tá... - diz, abrindo a porta da sala...
- Ow!!!
- O quê??!!
- A Máscara!!!
- Nossa... quase esqueci... aliás, esqueço sempre dessa m... tô falando? Minha cabeça não tá boa, não... não tá.. mmmm... mmmmm...

Coloca o acessório de rosto e saiu 
Silêncio no apartamento vazio.
Surge uma nova conversa, em tom baixo, no sofá sujo de migalhas.

- Pôxa... podia ter pedido umas Pringles também... - lamenta o bigodudo na arte da embalagem de batata frita vazia, largada sobre o sofá... - tô me sentindo tão sozinho também...
- Você é caro!!! Eu tô em promoção!!! Ele é meu! niahahahahaha - responde sorrindo, maquiavelicamente, o guepardinho desenhado no leiaute do saco vazio e amassado de Cheetos, jogado logo ao lado - Viu como ele me obedece cegamente? 
- Hum! Eu hein.. essa quarentena tá deixando todo mundo maluco... - balbuciou o bonachão de bigode.
- Ele está sob o meu poder.... MEU PODER!!! niahahahahaha... 

Há quadras dali, ele apenas tenta não pensar na continuação desse diálogo insano enquanto segue para o mercado. Não está bem! NADA BEM!!!

por Robson Leite

LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...