Anos 1990. Finzinho.
Não se sabe exatamente a aparência do nosso personagem. Nem quem viu o tipo soube descrevê-lo. Não é possível definir se era gordo ou magro, bonito ou feio, alto ou baixo, jovem ou já idoso. Apenas que tinha a pele muito alva e um certo ar aristocrático. Trajava terno, gravata, sapatos impecavelmente engraxados e chapéu Panamá.
Alguém que, secretamente, sabia muito bem o que queria quando entrou no táxi, na região do Bonfim.
- Sangue!
Era isso que tinha em mente enquanto cruzava o Centro da cidade, até descer do veículo na praça Duque de Caxias, Santa Tereza, uns oito quarteirões distante de onde pretendia resolver sua vontade. Pagou com uma nota de 50 e não aceitou troco, sob o olhar surpreso da taxista. Conferiu o relógio.
Quinze minutos para meia-noite.
Era quase hora.
- Sangue! – só isso queria, só isso lhe preocupava.
A caminhada lhe abriria o apetite. Desceu a rua calmamente, passos curtos. Evitou olhar para a igrejinha e ajeitou a gravata de seda. Preferiu atentar para o movimento intenso nos sobrados e bares. Era noite de sexta, quando toda BH resolve aparecer em Santa Tereza. Havia, por toda parte, jovens, maduras - mulheres pra todo gosto.
Mas o único gosto que desejava sentir naquele exato momento, acredite.
Era o de hemoglobina!
No caminho se deparou com algumas tentações. Um agradável odor vinha do outro lado da rua. Churrasco no Felino’s. Lotado.
Quem sabe ali...
Pensou na carne mal passada, pingando, que talvez lhe fizesse bem.
Uhmmmm! Salivou.
Parou, investigou o ambiente.
Não! Há molho de alho por toda parte e isso, definitivamente, não faz parte da dieta do cavalheiro. Passou por ali em quatro passadas largas.
Seguiu pela Mármore, sem perder tempo observado outros bares. Dobrou à esquerda na Quimberlita.
Ideia fixa.
- Sangue! – estava cada vez mais perto.
Passou pelo Bar do Dondinho e cumprimentou o proprietário, que fez um ar de: “- De onde conheço..?” Dúvida que permaneceu, pois não houve tempo para qualquer resenha que lhe esclarecesse.
O homem misterioso seguiu seu caminho. Ergueu o chapéu, passando a mão esquerda para realinhar os cabelos nem tão fartos.
Conferiu novamente a hora.
Faltavam cinco minutos para a meia-noite.
Quase.
- Sangue! Sangue! – pensava e salivava mais só disso.
Apreciou a lua.
Cheia e vistosa no horizonte. Só parou na esquina com Bocaiúva.
Chegara.
Atravessou a Tenente de Freitas, fazendo uma careta quase imperceptível. Gentleman, certamente não quis demonstrar que estava incomodado com a música que saía do carro barato, cujo dono investiu alto em equipamento de som e baixo em qualidade de repertório.
Não importava.
- ... – já nem pensava, tamanha excitação. Engoliu em seco.
Era ali!
Bar Bocaiúva.
O freguês com o jornal e seus livros, sentado à mesa de sempre, parou o que fazia e lhe fez um cumprimento leve com a cabeça.
Foi correspondido da mesma forma. Parado à entrada, buscou o dono do lugar, que estava oculto pela banca de cigarros onde ficava o caixa. Mas, como se pressentisse a presença ilustre, surgiu no balcão.
Os dois trocaram olhares.
Lúcio, o proprietário, tratou de expulsar com a calma de sempre o bebum que ocupava a mesa do canto.
- Sangue! – só pensava.
E conseguia até sentir o gosto ferruginoso entre os molares. Mordiscou os caninos, enquanto tomava lugar na cadeira.
Percebeu quando o dono do bar convocou a cozinheira enquanto abria uma garrafa e chamou atenção para a presença dele. “- O Conde!”, leu-se em seus lábios.
Martinha imediatamente entendeu o que deveria fazer. Largou o pano de prato, como se estivesse atrasada para algo.
Ao convidado, foi servida uma dose generosa de steinhäger e uma garrafa de Original estupidamente gelada.
Ritual quase completo.
Lúcio e seu freguês misterioso conferiram a hora.
Meia-noite.
- Sangue! – era o que tinha em mente quando despejava a dose do destilado garganta abaixo, esfriando o calor da bebida com cerveja.
Levantou-se.
Ultrapassou o balcão com a anuência do proprietário. Dobrou à direita. A luz pareceu vacilar, sem maiores explicações. Um silêncio pouco peculiar tomou conta.
A mistura de temperos e frituras e bebidas e outros cheiros de cozinha dominava o ar. A cozinheira de baixa estatura mas largas curvas estava distraída, batendo panelas.
O Conde chegou calmamente.
Respiração pesada. Só então, Martinha percebeu sua presença. Arregalou os olhos, tamanho susto.
- Conde?! – gritou, quase derrubando uma travessa.
Não esperava, mas logo se restabeleceria. O convidado ergueu então sua mão direita, apontando para o relógio de pulso.
Era hora.
Martinha olhou bem dentro de seus olhos em seguida. Como quem diz... "- Calma!"
E o Conde, calmamente, sentou-se novamente no lugar demarcado.
Suas papilas gustativas mal podiam esperar.
Logo estaria servido do tradicional Chouriço!!!
Pediu outra dose do destilado, acompanhada de mais uma cerveja. ok. Só mais uma.
- Daqui a pouco vem o Frango ao molho pardo, hein? Guarda lugar aí... - pede a cozinheira, orgulhosa da preferência.
O Conde se estremecia enquanto mergulhava o palito na tenra guloseima. Aguardara o mês inteiro pela sensação.
- Sangue! Sangue!
Já sentia todos os sabores explodindo no palato. Remetiam à infância na Romênia.
A mãe esquentando a barriga no forno à lenha. Bem antes de saber de toda a verdade sobre ele.
Algo que ninguém ali conhecia. Nem poderia saber.
Degustou a especiaria ciente de que nada ali lhe causaria desconforto.
- Sem alho! - confirmou a roliça bonachona, sábia em sua especialidade.
Era alérgico, coitado. Estômago fraco. Não podia com o tempero. Então sorriu, quase satisfeito, sem questionar sobre a demora. Mal podia esperar pelo próximo prato.
Naquela mesma noite uma mulher desapareceu, próximo ao metrô.
Mas esta é outra história.
por Bob LeMont
(texto de 2013 da série "Contos de Santa Tereza")