31/07/2018

O CONDE DA RUA BOCAIÚVA



Anos 1990. Finzinho.

Não se sabe exatamente a aparência do nosso personagem. Nem quem viu o tipo soube descrevê-lo. Não é possível definir se era gordo ou magro, bonito ou feio, alto ou baixo, jovem ou já idoso. Apenas que tinha a pele muito alva e um certo ar aristocrático. Trajava terno, gravata, sapatos impecavelmente engraxados e chapéu Panamá. 

Alguém que, secretamente, sabia muito bem o que queria quando entrou no táxi, na região do Bonfim.

- Sangue!

Era isso que tinha em mente enquanto cruzava o Centro da cidade, até descer do veículo na praça Duque de Caxias, Santa Tereza, uns oito quarteirões distante de onde pretendia resolver sua vontade. Pagou com uma nota de 50 e não aceitou troco, sob o olhar surpreso da taxista. Conferiu o relógio. 


Quinze minutos para meia-noite. 

Era quase hora.

- Sangue! – só isso queria, só isso lhe preocupava.

A caminhada lhe abriria o apetite. Desceu a rua calmamente, passos curtos. Evitou olhar para a igrejinha e ajeitou a gravata de seda. Preferiu atentar para o movimento intenso nos sobrados e bares. Era noite de sexta, quando toda BH resolve aparecer em Santa Tereza. Havia, por toda parte, jovens, maduras - mulheres pra todo gosto. 


Mas o único gosto que desejava sentir naquele exato momento, acredite.

Era o de hemoglobina!


No caminho se deparou com algumas tentações. Um agradável odor vinha do outro lado da rua. Churrasco no Felino’s. Lotado. 

Quem sabe ali... 

Pensou na carne mal passada, pingando, que talvez lhe fizesse bem. 

Uhmmmm! Salivou.

Parou, investigou o ambiente. 

Não! Há molho de alho por toda parte e isso, definitivamente, não faz parte da dieta do cavalheiro. Passou por ali em quatro passadas largas. 

Seguiu pela Mármore, sem perder tempo observado outros bares. Dobrou à esquerda na Quimberlita. 

Ideia fixa.

- Sangue! – estava cada vez mais perto.

Passou pelo Bar do Dondinho e cumprimentou o proprietário, que fez um ar de: “- De onde conheço..?” Dúvida que permaneceu, pois não houve tempo para qualquer resenha que lhe esclarecesse. 


O homem misterioso seguiu seu caminho. Ergueu o chapéu, passando a mão esquerda para realinhar os cabelos nem tão fartos. 

Conferiu novamente a hora. 

Faltavam cinco minutos para a meia-noite. 

Quase.

- Sangue! Sangue! – pensava e salivava mais só disso.

Apreciou a lua. 


Cheia e vistosa no horizonte. Só parou na esquina com Bocaiúva. 

Chegara. 

Atravessou a Tenente de Freitas, fazendo uma careta quase imperceptível. Gentleman, certamente não quis demonstrar que estava incomodado com a música que saía do carro barato, cujo dono investiu alto em equipamento de som e baixo em qualidade de repertório. 

Não importava.

- ... – já nem pensava, tamanha excitação. Engoliu em seco.

Era ali! 


Bar Bocaiúva.

O freguês com o jornal e seus livros, sentado à mesa de sempre, parou o que fazia e lhe fez um cumprimento leve com a cabeça. 


Foi correspondido da mesma forma. Parado à entrada, buscou o dono do lugar, que estava oculto pela banca de cigarros onde ficava o caixa. Mas, como se pressentisse a presença ilustre, surgiu no balcão. 

Os dois trocaram olhares. 

Lúcio, o proprietário, tratou de expulsar com a calma de sempre o bebum que ocupava a mesa do canto.

- Sangue! – só pensava.

E conseguia até sentir o gosto ferruginoso entre os molares. Mordiscou os caninos, enquanto tomava lugar na cadeira.


Percebeu quando o dono do bar convocou a cozinheira enquanto abria uma garrafa e chamou atenção para a presença dele. “- O Conde!”, leu-se em seus lábios. 

Martinha imediatamente entendeu o que deveria fazer. Largou o pano de prato, como se estivesse atrasada para algo. 

Ao convidado, foi servida uma dose generosa de steinhäger e uma garrafa de Original estupidamente gelada. 

Ritual quase completo. 

Lúcio e seu freguês misterioso conferiram a hora.

Meia-noite.

- Sangue! – era o que tinha em mente quando despejava a dose do destilado garganta abaixo, esfriando o calor da bebida com cerveja.

Levantou-se. 


Ultrapassou o balcão com a anuência do proprietário. Dobrou à direita. A luz pareceu vacilar, sem maiores explicações. Um silêncio pouco peculiar tomou conta. 

A mistura de temperos e frituras e bebidas e outros cheiros de cozinha dominava o ar. A cozinheira de baixa estatura mas largas curvas estava distraída, batendo panelas. 

 O Conde chegou calmamente. 

Respiração pesada. Só então, Martinha percebeu sua presença. Arregalou os olhos, tamanho susto.

- Conde?! – gritou, quase derrubando uma travessa.


Não esperava, mas logo se restabeleceria. O convidado ergueu então sua mão direita, apontando para o relógio de pulso.

Era hora.

Martinha olhou bem dentro de seus olhos em seguida. Como quem diz... "- Calma!"

E o Conde, calmamente, sentou-se novamente no lugar demarcado. 


Suas papilas gustativas mal podiam esperar. 

Logo estaria servido do tradicional Chouriço!!!

Pediu outra dose do destilado, acompanhada de mais uma cerveja. ok. Só mais uma.

- Daqui a pouco vem o Frango ao molho pardo, hein? Guarda lugar aí... - pede a cozinheira, orgulhosa da preferência.

O Conde se estremecia enquanto mergulhava o palito na tenra guloseima. Aguardara o mês inteiro pela sensação.

- Sangue! Sangue!

Já sentia todos os sabores explodindo no palato. Remetiam à infância na Romênia. 


A mãe esquentando a barriga no forno à lenha. Bem antes de saber de toda a verdade sobre ele. 

Algo que ninguém ali conhecia. Nem poderia saber. 

Degustou a especiaria ciente de que nada ali lhe causaria desconforto.

- Sem alho! - confirmou a roliça bonachona, sábia em sua especialidade.

Era alérgico, coitado. Estômago fraco. Não podia com o tempero. Então sorriu, quase satisfeito, sem questionar sobre a demora. Mal podia esperar pelo próximo prato.

Naquela mesma noite uma mulher desapareceu, próximo ao metrô.

Mas esta é outra história.
 
por Bob LeMont
(texto de 2013 da série "Contos de Santa Tereza") 

24/07/2018

FORA



Turba reunida.
Alguém chega, já tomando o microfone. 
E a palavra.




- God bless America!!! - grita.

- Yeahhhhhhhhhhhh!!! - responde a multidão.

- Estrangeiroooooos go home!!! - berra, reforçando dizeres que estão nos cartazes e faixas na plateia.

- Yeahhhhhhhhhhh!!! - reage a multidão, cada vez mais excitada.



Grita. Grita mais!



- E é o seguinte, ok guys? Fora strangeeeeers! Get out Imigrantes!!!

- Yeahhhhhhhhhh!!!!

- Os EUA para os americanos! Go home!!!

- Yuhuuuuuuu!!!! Isso mesmo!!!

- Esses imigrantes desgraçados, roubando nossos empregos!!! Fuck’em!!!

- Fuck them all!!!

- Yeahhhhhhhhhhhh!!!



Até que um gaiato lá empolga com esse trem de gritar contra imigrantes, sobe no palco, e resolve dar nomes.



- Fora Tesla!!!

- Fora Tes... Oi? Cê tá crazy da cabeça???

- Fora!!!  O dono é um tal de Elon Musk, rapaziada!!! Nascido sabe aonde? Na pôrra da África do Sul! Deve ser um tremendo dum negão o son of a...

- ...mas, calma aí, my friend... a empresa dele é 100% americana... e... ele é mais branco que eu e você, juntos...

- Não interessa!!! Fora estrangeiros!! América pros americanos!!!

O negócio é não perder a pose e nem a atenção dispensada.

- Tá... after a gente olha isso... mas... fora!!! Go home!!!

- Fora Google!!!

- Fooo... Pshhhh... what the fuck?????!!!!!!!!!

- Ráááá... fiquei sabendo, bicho... o dono nasceu na União Soviética, my friend!!! É comunista!!!!

- No, no, no... o Sergey Brin nasceu na Rússia, mas...

- Nasceu na Rússia em que ano?

- 1973.

- E a Rússia nesse ano fazia parte do quê?

- Ahmmm...

- União Soviética, mothafucka!!! URSS... bloco comunista... nasceu lá e nasceu comunista...

- Uhhhhhhhhhhhhhh comunista!!! Comunista!!!!!

- Fooooooora Sergey e leve o Google com vocêeeeeeeee...

Aí o cara sentiu a barra.

- Peoples, cês tão levando isso longe demais...

- Heeeeey, eBay!!! Get Awaaaaaaay!!!!

- My God... o eBay também??? Não...

- Siiiiimmmm!!!! Fora, Pierre Omidyar!!! Dono da eBay!!! Metade francês e a outra metade... não bastasse... IRAQUIANO!!!

- NÃO!!!!!...iraniano... ele é metade iraniano...

- ... WHATEVER!!! Irã, Iraque, same shit!!! Eu perdi meu primo Harry na guerra por causa desses caras e não aceito!!!

- Heeeey, eBayyy... get awaaaaaay... - canta a massa de manobra.

- Vamos montar uma turba de linchamento e comer o Jan Koun na porrada!!!

Opa! Já tão falando em dar porrada. "Fala alguma coisa", ele pensa.

- Calma, calma, calma! O que o inventor do Whatsapp fez pra vocês?

- Além de acabar com o nosso sossego e ser o mothafucka responsável pelos grupos da família em todo planeta?

- Sim! Sim!

- Eu descobri que o cacksacker – imaginem vocês – é ucraniano, galera! Outro vermelhinho infiltrado entre nós!!

- Uhhh vai morreeeeer... - gritam brasileiros misturados.

- E tem aquele chinoca comunista do Do Won Chang também...

- Chinoca? O cara da Forever 21? 
- Yeaaaaahhhhh
- The guy is coreano, for Christ sake!!!

- Pioroooou!! Piorooooou!!! Bomba nele!!!!!!!!!!


Nervoso, ele tenta tranquilizar a multidão cada vez mais descontrolada.

- People, people!!! Acho que vocês não pegaram o spirit... esses estrangeiros aí... they can stay!!! Sim, eles podem ficar!!! They are good... eles dão lucro... geram emprego e riquezas...

A turma se aquieta por alguns segundos. É tempo para pensar se é isso mesmo que querem. Se é justo. Um silêncio monumental toma conta. Tempo de lembrar que imigrantes ajudaram a construir a história de diversos países, inclusive os Estados Unidos. 

Até que alguém grita. 


- Hey, guys... temos aqui um amante de imigrantes infiltrado no moviment!!!
- Yeahhhhhhhh!!! - volta a berrar, ensandecida, a turba.

- Hey... hold on a minute, boyz... eu sou contra, sim... só que...

- Só que, o que? Hey man, você até tem cara de gringo... esse topete ruivo aí...

- Hey, hey, hey... mão mexe no topete, por favor...

- Você é um mothafucker irlandês???? Já deveríamos ter expulsado vocês há pelo menos um século...

- For Christ!!! Eu sou americano!!! Eu sou americano!!! Viva a Am...



Ninguém ouviu.
Ou não deu tempo.

Foi espancado. 
Até a morte.

 






por Bob LeMont

14/07/2018

ARTIFICIAL



Tempo bom era quando a gente achava que os robôs eram bacanudos.

Tinha o do seriado “Perdidos no Espaço”, que pressentia o perigo e salvava todo mundo. No futuro dos “Jetsons”, também dos anos 1960, a vida automatizada parecia ótima e só prometia benefícios. Máquinas inteligentes cuidariam do bem estar da gente o tempo todo. Mas aí veio “2001” com o sacana do Hal 9000 pra botar uma pulga na orelha: e se esses robôs ficarem tão espertos a ponto de se rebelarem? Depois veio o "Terminator". Aí fudeu geral! Máquinas no comando, bicho...

Bom. E se esse for o menor de nossos problemas?

Pra começar, isso não é mais "coisa do futuro". Esses “robôs inteligentes” já estão por toda parte. Tipo: você liga pro seu banco, pra sua operadora de TV por assinatura etc e já não é mais uma pessoa quem lhe atende direto. É uma máquina, que vai cumprindo etapas genéricas do atendimento assim, assim, assado... até que seja necessária (ou não) a intervenção humana. É o melhor exemplo que me ocorre de como a inteligência artificial (IA) atua em nosso dia-a-dia. E tem um troço que me assusta aí.

Há tempos a indústria e o agronegócio crescem investindo pesado em tecnologia de automação. No setor automotivo, por exemplo, etapas inteiras das linhas de montagem ficaram com cada vez menos interferência humana. A rigor, é isso que a tecnologia faz com mercado de trabalho – substitui pessoal, em busca de eficiência em processos produtivos, com economia em custos operacionais e despesas trabalhistas.

Com a inteligência artificial que taí a coisa não funciona diferente, não. A CB Insights, uma empresa que presta consultoria e pesquisa de mercado nos EUA, publicou dados assustadores. Na próxima década, pelo menos 10 milhões de estadunidenses correm o risco de ficar sem emprego por causa do crescimento da automação nas empresas. As áreas de serviço e de logística devem ser as mais afetadas a cada inovação nas tecnologias de IA.

A mesma pesquisa aponta que outros cinco milhões de postos de trabalho, ligados em especial ao comércio (onde softwares substituem centenas de milhares de vendedores em carne e osso a cada ano) também correm um risco, só considerado médio. É bem verdade que a expectativa é de que o mercado se adapte e que outras profissões surjam, melhorando essa matemática aí. Mas os tempos mudaram. As relações de trabalho também.

A velocidade das revoluções tecnológicas é absurda e o investimento em IA, hoje, impulsiona centenas de Start Ups em todo planeta. Os bot softwares são capazes de reproduzir e simular ações humanas em quase todas as áreas. Inclusive as criativas. Há quem recomende que esses mecanismos auxiliem e não substituam. E há trabalhos degradantes e perigosos em que pessoas podem muito bem ser substituídas por robôs.  A nanotecnologia, aplicada à medicina por exemplo, pode salvar inúmeras vidas.

Ok, há mais coisas a considerar.

Apenas que não há estudos que apontem o impacto das novas tecnologias de IA no mercado de trabalho, por enquanto. O que sabemos é que os robôs já conseguem conversar, andar, fingir emoções etc. Um dia será corriqueiro ve-los dirigir carros, pilotar aviões e fazer cirurgias, tudo sem interferência humana. Provavelmente, em breve, serão capazes de construir outros robôs mais espertos ainda. Aliás, consta que já teriam conseguido criar até uma língua própria – sendo, posteriormente, desligados pelo Google.

Será mesmo? Enfim.

Sabemos também que, a serviço de grupos pouco honestos, bots manipulam dados nas redes sociais, interferindo nas vidas das pessoas. Tudo através de algoritmos que armazenam dados pessoais à revelia dos usuários. Essas coisas absorvem e processam conhecimento melhor e mais rápido do que os seres humanos. Essa eficiência dos robôs define o sucesso dos negócios na era virtual, não importa se de forma lícita ou não. Daí que se invista cada vez mais neles.

Fico pensando: essas empresas investem tanto para que robôs fiquem no lugar das pessoas e esquecem que robôs não vão às compras. Será que elas pensam sobre quem serão os consumidores do futuro? Quem se preocupa em garantir que a gente que perdeu seus empregos por conta da IA será reposicionada no mercado? E de qual mercado estamos falando, se nenhuma profissão está livre dessa automação?

Fodão em futurologia, até o físico Stephen Hawking  declarou ter certo medinho das máquinas espertas. Mas o buraco pra ele era mais embaixo. "Eu tenho medo de que a Inteligência Artificial substitua os humanos por completo. Se as pessoas projetam vírus para computadores, alguém irá projetar que IA possa melhorar e e se reproduzir. Esta será uma nova forma de vida que supera os humanos", disse, em entrevista à revista Wired.

Muito antes de as máquinas se rebelarem, talvez trabalhadores famintos resolvam partir pra cima delas. Talvez jamais saibamos - as mídias, velhas e novas, já estariam comprometidas. Sabemos que alguns sites utilizam dispositivos capazes de (re)produzir material jornalístico, substituindo palavras e estruturas de acordo com o interesse do freguês. Daí as Fake News, daí a tal Pós-Verdade etc etc etc. Este texto mesmo, agora mesmo, pode estar sendo escrito por um robô.

Quem garante que não?.. que não... garante... não... garante... que... gar... bzzzzzzzzz



Por Bob LeMont (ou não)

LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...