Loirona, coroa, empresária. Casadíssima. Marido deputado. A
outra tem uns 30 e poucos, é uma espécie de secretária particular. Tipinho bem bajulador.
Entrando
no elevador, dão de cara com o Zé - o porteiro da tarde. A mais jovem aperta o botão da
garagem. Os três descem juntos. A madame ao celular. Voz esganiçada.
- Que foi, Padilha?! - é o deputado - A ligação tá péssima, entrei no elevador aqui...
– pausa, olha em volta, comenta de passagem – ...que cheiro é esse, gen... o
que, Fifonho? Vai pra onde?
Elevador social quebrado, todo mundo descendo pra garagem junto. O Zé segurando umas caixonas - muitos sacos com lixo. E fingindo não
escutar a conversa.
- Padilha, Padilha. Cuidado. É favela, meu amor... Fifonho!!! É
perigoso, sim.
Pausa. As duas olham de soslaio pra ver se o porteiro está escutando.
Ele fingindo que não.
- Ah, meu amor. Eu sei, é campanha. Ninguém lembra as coisas boas que
você fez, né, Fifonho? - e rindo- Ainda bem que nem as ruins...
Ela ri até, fazendo sinal pra secretária. O porteiro, lá, firme. Só quer se
livrar logo do lixo fedorento.
- Tá, mas cuidado! Eu sei que é favelinha, que não tem tráfico, e que você
vai com PM, exército, aeronáutica e o escambau!, e que seus dois seguranças estão contigo. Protegido você
está. Mas tem que ter cuidado, Fifonho!
O Zé coça o nariz. O cheiro do lixo não é dos mais agradáveis. Elas já
se mostram incomodadas também. Fazer o quê? O elevador social deu problema. São
só 10 andares.
- Padilha, você é um homem bom. Adora o povo, é um sujeito simples, de
origem humilde. As pessoas sabem disso. Mesmo a turma da favela lá. Todo mundo
sabe que você conversa de igual pra igual com quem quer que seja.
Ele tenta evitar ficar com o nariz muito perto da caixa com restos de
comida que traz nos braços. Mas o cheiro é realmente forte – a velhinha do 1105
não fechou direito a sacola e os restos podres do jantar de ontem vazaram.
- Olha aqui no prédio! Você dá bom dia pra todos, sem distinção - do
Zé porteiro ao juiz José da cobertura 03. Isso é ou não é coisa de quem é do
povo, amor? Você trata todo mundo do mesmo jeito.
E nada do elevador chegar. Até a madame estava começando a ficar
realmente incomodada com o cheiro.
- Escuta a sua gata! – pausa - Quais escândalos com o seu nome? - pausa, ouve -
Merenda escolar, meu amor? Ninguém lembra disso mais. Todo dia é um escândalo
novo, o seu já foi. O que acham que você roubou é fichinha perto do resto... –
olhando para o porteiro, que não troca olhares com ela - ... além do que,
ninguém provou nada! Ninguém provou NADA! Pode ir tranquilo. O povo ainda te
adora, você vai ver. Mas cuidado que é favela, né? Sai rápido. E não toma café,
não come nada, hein? Na eleição passada aquele bolo de milho da favelada deixou
você dois dias de cama. - pausa, ouve - Não, café pode. Água fervida, não tem perigo.
Só mais um andar antes da garagem.
- Fifonho, nós temos berço mas sabemos valorizar a gente simples. Você
vai ver quando for governador dessa pôrra... – pausa, fala baixinho com um
sorriso maroto no rosto - ... se lhe prenderem, eu assumo no seu lugar,
tolinho...
Um leve baque. Chegaram.
- Ó, o elevador chegou aqui na garagem. A ligação tá muito ruim.
Depois a gente fala. Cuidado, hein? Deixa eu sair que não tô aguentando mais
esse fedor. É que o social quebrou e a gente tá tendo que usar o de serviço.
Tão descendo com lixo aqui, um horror...
O porteiro deixa a madame descer primeiro e segue atrás, lentamente,
tentando equilibrar as caixas com o lixo do 1105. Mas o fedor de amônia da
areia do gato angorá da velha - que também vazou – não lhe deu trégua.
- Atchim!!!!
A empresária olha para trás com ar de estranhamento. Volta até onde
está o porteiro e dá-lhe uma bronca daquelas.
- Escuta aqui, meu filho. Não espirra em cima do lixo, não - tá
pensando o quê? Não tem pena dos pobres mendigos que vão comer os
restos que estão aí , hein?
Ele pede desculpas. As duas acenam negativamente com a cabeça, não
acreditando no que acabaram de presenciar.
- Deixa, madame! O povo só pode contar com gente boa que nem a senhora
e o deputado mesmo. Pobre não liga pra pobre não...
E o Zé, todo sem jeito, pede desculpas, enquanto corre para a
lixeira com a porcariada da velha do 1105.
- Tô ferrado... isso vai chegar no ouvido do síndico... aquele filho
d’uma égua...
Ah! O síndico, por sinal, é o Fifonho...
por Bob LeMont