24/09/2018

FIFONHO



Loirona, coroa, empresária. Casadíssima. Marido deputado. A outra tem uns 30 e poucos, é uma espécie de secretária particular. Tipinho bem bajulador. 

Entrando no elevador, dão de cara com o Zé - o porteiro da tarde. A mais jovem aperta o botão da garagem. Os três descem juntos. A madame ao celular. Voz esganiçada.



- Que foi, Padilha?! - é o deputado - A ligação tá péssima, entrei no elevador aqui... – pausa, olha em volta, comenta de passagem – ...que cheiro é esse, gen... o que, Fifonho? Vai pra onde?



Elevador social quebrado, todo mundo descendo pra garagem junto. O Zé segurando umas caixonas - muitos sacos com lixo. E fingindo não escutar a conversa.



- Padilha, Padilha. Cuidado. É favela, meu amor... Fifonho!!! É perigoso, sim.



Pausa. As duas olham de soslaio pra ver se o porteiro está escutando. Ele fingindo que não.



- Ah, meu amor. Eu sei, é campanha. Ninguém lembra as coisas boas que você fez, né, Fifonho? - e rindo- Ainda bem que nem as ruins...



Ela ri até, fazendo sinal pra secretária. O porteiro, lá, firme. Só quer se livrar logo do lixo fedorento.



- Tá, mas cuidado! Eu sei que é favelinha, que não tem tráfico, e que você vai com PM, exército, aeronáutica e o escambau!, e que seus dois seguranças estão contigo. Protegido você está. Mas tem que ter cuidado, Fifonho!



O Zé coça o nariz. O cheiro do lixo não é dos mais agradáveis. Elas já se mostram incomodadas também. Fazer o quê? O elevador social deu problema. São só 10 andares.



- Padilha, você é um homem bom. Adora o povo, é um sujeito simples, de origem humilde. As pessoas sabem disso. Mesmo a turma da favela lá. Todo mundo sabe que você conversa de igual pra igual com quem quer que seja.



Ele tenta evitar ficar com o nariz muito perto da caixa com restos de comida que traz nos braços. Mas o cheiro é realmente forte – a velhinha do 1105 não fechou direito a sacola e os restos podres do jantar de ontem vazaram.



- Olha aqui no prédio! Você dá bom dia pra todos, sem distinção - do Zé porteiro ao juiz José da cobertura 03. Isso é ou não é coisa de quem é do povo, amor? Você trata todo mundo do mesmo jeito.



E nada do elevador chegar. Até a madame estava começando a ficar realmente incomodada com o cheiro.



- Escuta a sua gata! – pausa - Quais escândalos com o seu nome? - pausa, ouve - Merenda escolar, meu amor? Ninguém lembra disso mais. Todo dia é um escândalo novo, o seu já foi. O que acham que você roubou é fichinha perto do resto... – olhando para o porteiro, que não troca olhares com ela - ... além do que, ninguém provou nada! Ninguém provou NADA! Pode ir tranquilo. O povo ainda te adora, você vai ver. Mas cuidado que é favela, né? Sai rápido. E não toma café, não come nada, hein? Na eleição passada aquele bolo de milho da favelada deixou você dois dias de cama. - pausa, ouve - Não, café pode. Água fervida, não tem perigo.



Só mais um andar antes da garagem.



- Fifonho, nós temos berço mas sabemos valorizar a gente simples. Você vai ver quando for governador dessa pôrra... – pausa, fala baixinho com um sorriso maroto no rosto - ... se lhe prenderem, eu assumo no seu lugar, tolinho...



Um leve baque. Chegaram.



- Ó, o elevador chegou aqui na garagem. A ligação tá muito ruim. Depois a gente fala. Cuidado, hein? Deixa eu sair que não tô aguentando mais esse fedor. É que o social quebrou e a gente tá tendo que usar o de serviço. Tão descendo com lixo aqui, um horror...



O porteiro deixa a madame descer primeiro e segue atrás, lentamente, tentando equilibrar as caixas com o lixo do 1105. Mas o fedor de amônia da areia do gato angorá da velha - que também vazou – não lhe deu trégua.



- Atchim!!!!



A empresária olha para trás com ar de estranhamento. Volta até onde está o porteiro e dá-lhe uma bronca daquelas.



- Escuta aqui, meu filho. Não espirra em cima do lixo, não - tá pensando o quê? Não tem pena dos pobres mendigos que vão comer os restos que estão aí , hein?



Ele pede desculpas. As duas acenam negativamente com a cabeça, não acreditando no que acabaram de presenciar.



- Deixa, madame! O povo só pode contar com gente boa que nem a senhora e o deputado mesmo. Pobre não liga pra pobre não...



E o Zé, todo sem jeito, pede desculpas, enquanto corre para a lixeira com a porcariada da velha do 1105.



- Tô ferrado... isso vai chegar no ouvido do síndico... aquele filho d’uma égua...



Ah! O síndico, por sinal, é o Fifonho... 



por Bob LeMont

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