Apostaram entre eles, melhores amigos. Grupo grande, juntos desde o colégio. Íntimos demais. Era uma turma competitiva paca. Tiravam par ou ímpar por qualquer motivo.
- Cruzeiro campeão! Mole!
- Que nada, vai dar
Galo!
- Meu Coelhão vocês respeitem!
- Vale quanto?
Naquele ano deu América. O Careca fez a festa: pagava 10 por 1 no quadro de apostas da turma. Imagina isso em birita? Cara cheia pra todo lado. Daí que, sabe-se lá em qual momento de bebedeira extrema, alguém entrou numas.
- Quem de nós vai por último?
- Vai pra onde,
Fulano?
- Pro caixão, pô...
- Ihhhhh...
suspende...
- Não, é sério! Quem
vocês acham que vai ficar pra semente?
Após um silêncio constrangedor, Alguém arriscou...
- Eu! - o mais novo em questão. Seguiu uma lógica perversa.
- Fumando desse tanto?
Sei... - retrucou o Outro
Aos poucos, o grupo abandonou o desconforto e foi apostando em si próprio. Um a um. Goró, meu chapa. Favorece os papos mais bêbados e sombrios da alma.
Combinaram o seguinte.
Aposta é aposta.
- Vale quanto?!
- Casa 1000 de cada
um, a gente deposita numa poupança qualquer. O que restar, retira.
Houve quem tivesse o sangue gelado no ato. "Papo ruim, gente... deixa disso..."
Mas era a saideira. "Bora?" "Bora..."
Até brindaram.
- Ao último! - com uma ressalva.
Deveriam todos ser cremados. E as urnas com as cinzas deveriam permanecer juntas, sob custódia do mais jovem "sobrevivente".
- Boa, boa! - disseram, sorrindo uns par os outros e se abraçando, pra abrandar o clima estranho. Como se isso não fosse estranho, né... bem...
Mas assim foi.
Dois anos depois, Ana morreu de acidente. Em menos de seis meses foi o Buiú. Câncer no pâncreas. Jé pulou da janela. Que horror! Nada a ver com a aposta - ela andava meio ruim dos nervos, mesmo. Depressiva demais.
Um a um, eles viram seus pares partindo. Sofreram, choraram. Mas havia a tal aposta. E logo alguém se gabava de estar no páreo.
- Ah, já tô fazendo
planos praquela dinheirama toda...
- Aquieta, mané...
Os velórios seguintes começaram a ficar mais incômodos. A brincadeira já causava mais estresse que graça. Houve até bate-boca na despedida da Lanna. O marido – o Lenno - não gostou nada de ouvir o burburinho que parecia de comemoração.
- Vocês estão agindo como idiotas! Perderam o bom senso? Respeita, pôrra!
E foi um tal de "Respeita nada" e de "Todo mundo ali tava de olho no dinheiro guardado". Climão mesmo.
A amizade começou a esfriar ali, junto com o mais recente cadáver. Assim... claro que compareceram aos velórios seguintes. Mas mal conversavam. Mal se olhavam na cara. A cláusula do crematório e da custódia das urnas foi mantida. Ainda que nas duas décadas seguintes, era um telefonema e olhe lá. Às vezes um dos filhos era quem fazia o contato.
Quando o Careca morreu de cirrose, descobriram que sobraram só dois. João e Maria. Já velhinhos, bem velhinhos.
- Lembra da aposta?
- Bobagem. Coisa de
bebum.
- Bebum nada.
Trocaram olhares desafiantes. Tipo..."Tô bem pra caraio e você, sua coroca?" e tipo... "Vou comprar uma cadeira de rodas novinha com aquele dinheiro, burro velho". Tudo no olhar. Credo!
Só dois.
Exames. Fezes, sangues, eletros. Tudo certo. Cada novo aniversário, um novo olhar atravessado.
- É seu último! - queria crer aquele um, em silêncio.
- Vou no seu
velório ainda, cabra... - acreditava a outra.
Competitivos a extremo, já disse.
Competitivos a extremo, já disse.
Chegaram aos 80. E nada.
Exceto...
Ele começou a falhar das ideias. Já não sabia quem era quem. Ela idem. Trocava nomes, lugares, datas.
Belo dia, era de novo aniversário de um. 100. De quem, mesmo? O que é isso, essa gente toda?
Veio a TV, aquele povo todo registrar. Dois amigos de longa data que alcançavam idades e amizades longevas. Pra aliviar a gente dos desvarios da política, da economia. Virou pauta, fazer o quê?
O repórter os coloca frente à frente. Diz qualquer coisa sobre amizade que o tempo não separa. Um olha pro outro.
- Lhe conheço? Velha com cara de doida?
- Faço ideia... seu
monte de pelanca velho...
O repórter, constrangido, elimina o diálogo da matéria. Edição resolve tudo. A pauta era a amizade sem data, E assim foi. Lindo. Trilha maravilhosa, texto sublime. Audiência lacrimejante.
Para eles o olhar trocado era entre estranhos, que nem faziam ideia do porquê de estarem ali.
Acabaram no mesmo retiro. Os filhos não davam mais conta de tantos cuidados. Um dia, durante um banho de sol, apoiado por uma cuidadora, ele olhou pra ela. Ela, numa cadeirinha de rodas, olhou pra ele. Já não sabiam mais nem quem eram eles mesmos. Mas algo fluiu. Tocaram as mãos. Trocaram carinhos. Sorriram um pro outro. Como duas crianças, que se viam pela primeira vez e logo se apaixonavam pela imagem de um igual.
Uma cena que se repetia a cada passeio no quintal, emocionando enfermeiras e cuidadoras. Era sempre uma primeira vez. Repetiam o mesmo carinho, sem palavras. Foi assim até a véspera do Natal.
As duas famílias foram chamadas às pressas. Uma não sabia da outra. Assustaram quando se encontraram.
- Seus pais estão desaparecidos... - anuncia o constrangido diretor do asilo.
- Como?! O que é isso?
Negligência!
- Deixaram dois velhos
com Alzheimer fugir? E o que pagamos pra vocês pra darem segurança a eles?
Explicou que algo muito estranho acontecera às vésperas. Do nada, João lembrou do nome de Maria. E vice-versa. Começaram a recordar de lugares, momentos. Riram muito.
- Do nada? Lembraram de tudo?
- Pois é... tudinho...
Inclusive de uma tal aposta, que os havia afastado de tudo que era mais gostoso na vida: a amizade que os uniu desde a infância. Choraram muito...
- Papai falava desse raio de aposta, mas tinha vergonha de dar detalhes!
- Mamãe também. Sei
que cada um dos amigos que morria e era cremado tinha que ficar lá na casa. E
brigava muito com a gente quando dizíamos que era melhor entregar aos herdeiros
e tal...
- Mas era uma espécie
de pacto entre eles. Tinha documento em cartório e tudo. Nenhuma família
poderia recolher as cinzas. Tinha que ficar tudo junto.
Chama polícia, vai em hospital, IML. Nada dos dois velhinhos.
Foram procurar nas antigas casas onde moravam. A filha de Dona Maria reparou que estava faltando algo importante e quase teve um chilique. Ficou aos gritos...
- As urnas! As urnas! As urnas!
- Que foi? Calma!
- Sumiram! Olha!
Simplesmente sumiram, ficavam ali em cima! Sumiram! Todas elas!
Perplexidade. O que dizer? O que pensar? A polícia não tinha notícia. Na verdade, nem ligava. Tinha mais o que fazer. E as famílias deixaram pra lá.
Daí que, meses depois.
Mensagem pelo Whatsapp. Um textão. O celular que estava mandando? O da Dona Maria. Disse que ela e o João estavam vivos e bem de saúde. As urnas com os restos mortais de toda turma estavam com eles.
Confirmou a história de recuperar a memória. Atribuiu a um amor imenso que estava guardado e que aflorou do esquecimento. Um sentido, uma fagulha que deu, e lá estava tudo muito claro novamente.
Disse ainda que choraram muito, por terem desperdiçando uma existência inteira longe da melhor coisa que os uniu: a amizade. Por causa de uma aposta idiota, entre bêbados.
Pediu pras famílias ficarem tranquilas. Pegaram o dinheiro da tal aposta, e com os juros e dividendos, poderiam se manter o restinho de vida que tinham de maneira confortável. Escreveu: “estamos todos juntos novamente. E felizes como nunca.” E começaram uma troca de mensagens de texto:
- Mãe, é você mesmo? -
digitou a filha.
Pausa.
Pausa.
- Como assim, menina?
– foi a resposta.
- Sei lá, - whatsappeou, preocupada - vai que alguém
ficou sabendo da história e sequestrou vocês, as urnas, tudo junto e com o
dinheiro?
- Jura que você tá
achando que eu não sou eu?
- Não sei!
Pausa nas mensagens. Até que surge na tela.
- Vale quanto?
por Bob LeMont
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