14/05/2019
SOBRE O TEMPO
O Tempo não está sendo generoso comigo.
Estou envelhecendo muito mal. Os cabelos cada vez mais ralos, agora também esbranquiçados. Sinto muitas dores pelo corpo. Dormir, dormir. Cedo. Acordar também, cedo. Um vazio imenso durante o dia. O trabalho sazonal já não preenche. O desejo de me manter ocupado é cada vez menor. Olho para mim, o cara no espelho. Horrível. Tenho vergonha do que me tornei. Já não consigo diminuir a barriga. Nem bebendo menos, bem menos, refrigerante e cerveja. Comendo pouco, muito pouco. Ela, a pança, continua maior do que deveria. O tônus muscular murcho, decadente, é triste. Nem caminhar me apetece mais. As pessoas me olham e só sabem dizer: "Senhor! Bom dia, senhor! Boa tarde, senhor. Boa noite, senhor. O senhor aceita?" Me sinto com a aparência de um velhote de 70 anos. Tenho quase 20 a menos.
E a culpa é do Tempo.
É bem verdade que nos estranhamos desde sempre. Quando criança eu queria fazer 18 anos rápido, mas sempre acordava mais criança. Ficava puto. Era criança de esconder sabugo de milho atrás de livro da biblioteca, pra ver se acordava um Visconde. Eu lia Monteiro Lobato e achava que era possível. Criança, criança. Querendo um amigo, sempre. Se eu tivesse 18 anos as pessoas gostariam mais de mim? Era o Tempo me enchendo de esperanças pra depois tira-las de mim. Sempre foi assim. E como eu custei a descobrir que ele me cercava só pra fazer bullying. Um vez o reconheci num aniversário, escondido entre as velas de um bolo de limão - que eu odeio.
O bolo de limão e o Tempo.
Desamor à primeira vista. O Tempo sempre foi e sempre será meu maior inimigo sobre a terra. Me fez acreditar que era possível, inclusive, viajar através dele. Voltar, corrigir, como o Michael J. Fox. Mais uma mentira. Adolescente trouxa! Eu já xinguei o Tempo, eu já chutei o Tempo, fiz questão de maldizer o Tempo. Não sei não gostar de algo sem me mostrar insatisfeito. De alguma forma. Às vezes sutil, às vezes estupidamente. Com o Tempo sempre foi assim. Com pessoas também. E ele, filho da puta que é, está se vingando. Está construindo pra mim o pior futuro possível. O passado já não foi grande coisa, o presente sofrível... e o amanhã está cada vez pior. O Tempo, esse filho da puta, insiste em se mostrar. Dizer quem é que manda. E pune quem se levanta contra ele assim. Humilhando.
O Tempo deveria levar uma surra.
Sabem o que é foda nisso tudo? Ainda ontem eu esperava o melhor. De verdade. Ontem, no sentido de até outro dia. Apesar dele, o Tempo, entendem? Eu ainda acreditava que sendo uma pessoa boa, honesta e generosa, que tudo retornaria pra mim da mesma forma positiva. "Seja gentil, seja generoso", eu pensava, crente que tudo de melhor iria acontecer comigo, por ter sido bom e gentil. Mentira, não aconteceu nada. A vida continua uma droga. As pessoas continuam sendo umas merdas, por mais que você tente ser legal com elas. Te acham idiota por ser assim. Não existe isso de reciprocidade porcaria nenhuma, gente. Esquece. O Tempo passou, eu apenas envelheci. Nem mais sábio fiquei. Hoje me sinto até mais burro. E o mundo todo em volta idem.
Emburrecemos e a culpa é do Tempo.
Continuo estúpido com as pessoas que amo. Não sei o porquê. Trato mal. A esposa está à base de remédios, sempre em depressão. Descobri recentemente que o filho, que sempre pareceu o mais equilibrado da casa, está na terapia. A filha tem um humor maravilhoso, mas vive cheia de medos. Eu sei. Tudo por minha causa, obviamente. Dá até pra ouvir o Tempo rindo alto. Ele me machuca também através deles. Porque não aprendo com ele. Não sei ser uma pessoa melhor pra minha família. Sinto tanta culpa. Por não poder dar a eles nada além das minhas ironias. Não temos bem algum. Estamos pra perder o apartamento que custei a comprar. Logo não terei nem casa mais. Nem meus amigos. Esses eu já perdi. Não consigo mais me relacionar com ninguém. Sou o ser humano mais solitário e triste no planeta.
O Tempo só me fez mal.
Não tem emprego pra ninguém. Não tem saúde pra ninguém. Não tem educação pra ninguém. Não tem justiça pra ninguém. Só pros de sempre. Os endinheirados. Ou os que amam o dinheiro, o lucro. O Tempo é um filho da puta ganancioso, só respeita o dinheiro. E como eu nunca tive isso em grande quantidade, ele me faz aquele sinal com o dedo médio há décadas. O Tempo me odeia, tanto quanto eu a ele. A diferença é que o Tempo está me matando aos pouquinhos e eu não consegui nem fazer cosquinha nele. O Tempo não tem coração. É uma entidade cósmica, acima de tudo. Deus certamente não existe, senão nem haveria o Tempo. Ele não permitiria. O Tempo não é uma invenção da humanidade para contar dias e noites.
Ele simplesmente existe.
Eu só vou me livrar dele morrendo. Tem dia que eu gostaria muito que isso acontecesse. Tem dia que me dá um medo horrível. É ele, me fazendo fraquejar, como sempre. Pois sabe que não posso derrotá-lo. Talvez faça que eu definhe à vista d'olhos, como está fazendo com meu pai. Um homem forte, íntegro, o cara mais honesto que eu conheci na vida. Está lá, com Alzheimer. Nem sabe mais que a gente existe. É o Tempo mostrando quem é que manda. E que não tem essa de ser honesto. A humilhação é essa. Ou você se curva ante a ele, ou vai levar. Jamais me curvarei diante do Tempo. No que depender de mim, seremos inimigos eternos. Mesmo que, no fim, ele ganhe.
Mesmo que, no fim, eu nem me lembre que ele existe.
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