17/10/2019

QUASE LÁ



Hoje me dei conta. 

Estou morrendo. Eu disse hoje ? Bobagem ! Rá ! Não foi nem hoje, nem ontem que fui advertido. Eu sempre soube, só não queria admitir. Uma reflexão simples, de agora mesmo: você começa a morrer do instante zero em que sua célula começa a se dividir no bom e velho útero materno. Sei lá quem pescou isso primeiro. Grande verdade! Nascer é pré-requisito para morrer. 

Pronto. 

E cada minuto que passa, é um a menos para o fim de tudo. Meu adeus se aproxima e com ele o momento da verdade. Saberei finalmente sobre muita coisa que me encana há décadas. Não sei de onde vem isso. É instintivo ? Sempre achei que só viveria até os 50, não me perguntem por quê. Para provocar algum sentimento de pena, ou aporrinhar a família, fazer chantagem emocional? Talvez, ao estipular esse limite, eu quisesse, inconscientemente, me poupar de ver pessoas que eu amo estiradas em um caixão ou indo pro crematório. 

Vai saber. 

A mente humana é muito complexa. A morte é um de meus fantasmas, que há tempos me cercam à noite e me fazem chorar de medo. Existe Céu ? Porque o Inferno é aqui mesmo, disso eu sempre tive certeza. Esse troço de diabo não existe, cara. É só uma metáfora pra tudo que nos tira do prumo, que nos prejudica. E nem isso, já que muito do nosso prazer é mal visto por aí. 

Malditos fundamentalistas. 

Mas... e Deus? Existe? Morrer... dói ? Quero dizer... dói muito ou... por muito tempo? Mesmo a morte mais besta? Deveria estar feliz, afinal, a hora das respostas se aproxima. Mas a dúvida me corrói - e se não houver nada de bom nisso, hein? E se nos restar apenas um imenso vazio, idêntico ao momento anterior à nossa existência? A não-existência, como é? Desliga tudo e pronto? Caramba! Não é justo. Cristãos se preparam tanto pra vida eterna, há tantas promessas paras os árabes, os judeus ficam horas de cara pra um muro, os budistas chegam a comemora-la. Já pensou? Morreu, acabou...

Sacanagem, desperdiçar saquê assim ! 

Bom. Positivismo. Não adianta reclamar de véspera. Estou indo. Logo saberei. Não demora. Cada linha que escrevo me deixa mais perto da última frase. Gostaria que ela fosse genial, que fosse lembrada para sempre. Mas a pessoa normalmente é lembrada pelo conjunto da obra, pelo que ela e sua arte ou ofício representaram num contexto geral. Uma frase não me lançaria rumo à eternidade. Aliás, grande merda minhas palavras ficarem ecoando depois que eu me for. Depois, foda-se. 
 
Morri mesmo!

Quem vai querer lembrar de mim? Ou “até quando”? Meus filhos carregarão algum carinho por mim? Lembrarão de que jeito? Terei um rosto para eles? Sabe, o esquecimento também é um processo de morte. Se nos esquecem e de vez em quando nos lembram, nos enterram quantas vezes? Quantas lágrimas ainda derramarão ? Talvez isso seja proporcional ao bem que lhes fiz. Ou o mal. Dualidades, dualidades. Ah! Quem sabe? É algo que só aflora depois que partimos. 

Antes é tudo teoria. 

Tudo conversa de psicanalista. No mínimo, papo de boteco. Depois? A prosa é outra. Só fazendo que nem eu tô fazendo, mesmo. Morrendo. A hora urge. Quem me abandonará primeiro? Meu coração ou meu cérebro? Fato - alguns minutos (dez, eu acho) sem oxigênio matam os neurônios. Esses que estão aqui, agora, me ajudando a raciocinar para esta crônica. Qual deles vai asfixiar primeiro ? Sei que são as únicas células que não se regeneram em todo o corpo e que têm exatamente a minha idade – estão todos comigo desde que eu nasci, já que não tive perda de massa encefálica nem fui vítima de traumatismos graves. Neurônios, atenção! No fim vamos nós todos, juntos, direto pro beleléu. Ou não.

 Ou talvez só vocês. 

Uai ! E espírito tem cérebro, cara ? De onde vem a consciência, o saber de uma alma samaritana? E lá do outro lado – se houver outro lado – as criaturas pensam ou apenas contemplam? Imagino. Se Jesus que, dizem, andou cá entre nós, era um cara tão esperto... então a eternidade deve ser um lugar de pensar! Mas isso pra mim é muito tranqüilo de dizer. Se há como acumular conhecimento, tem que haver um equivalente etéreo pra nossa cuca. Ora ! A não ser que Deus seja uma espécie de computador central que distribui informações às criaturas celestiais e também a todos os desencarnados. Uma espécie de abelha-rainha. Sabe o Império Borg ? 

Ah, esquece...

Minha ruminança com relação ao cérebro tem uma razão plausível. Eu acho que ele é nosso verdadeiro paraíso. Que quando a gente morre, é ele que assume a rédea. Ele que arma tudo pra gente sair em grande estilo. Ou não. Lógico ! Ele contém nossas verdades e as nossas mentiras de todos os dias. O endereço do real e do imaginário, do corriqueiro e do fantástico, tá tudo na nossa cabeça. Injustiça. Os poetas e alguns cardiologistas nos fizeram acreditar que o segredo da vida estava no coração. Que era ele quem amava, que era ele que nos fazia sentir a existência nossa e a dos outros. Até nossos sexos estiveram sempre em posição mais importante no ranking dos órgãos vitais.

Não ! 

Com o tempo você aprende a sobreviver sem pau, nem buceta - não necessariamente nessa ordem. Ok: quem gritou “E o cu”, aí? Chega de sacanagem - o cérebro, esse injustiçado, era quem fazia tudo acontecer. E, pela lógica, é ele quem deve encerrar as nossas transmissões. Como num sonho em que espaço e tempo não batem. Saca, né ? Aquele pesadelo terrível que parece que não acaba nunca ? Ou aquela experiência incrível, que faz você acordar em dúvida sobre se aconteceu ou não. Rá, mas olha só que você não vai acordar ! É !! Aí que está ! Gradualmente, sua consciência vai apagando, apagando, apagando... e morrer é isso. 

Ao menos nesta minha viagem. 

Pior é que se eu estiver certo, ninguém vai ficar sabendo. Talvez nem eu. Ou você percebe na hora que está sonhando as coisas? Sua imaginação induz a acreditar em tudo que seus outros terminais nervosos lhe dizem. Claro. Quem está ou já esteve nas últimas costuma dizer que um filme da vida dela passa diante dos olhos. Eu acho que é isso, com as idéias desacelerando na medida em que a gente tá indo embora. Daí parecer uma eternidade. E é. A única que vamos conhecer. Mas também, uma experiência de quase-morte não é uma experiência de morte ali, na tora. Na batata. 

Aí, só morrendo. 

Posso estar sendo injusto com a criatura que, supostamente, criou isso tudo. Cenários, personagens, figurinos, argumentos. Né? Pode realmente existir, talvez não como nós imaginamos. Deus criou o homem ou terá sido o contrário? Se Ele existir, que me perdoe. Se tudo sabe, entenda que, no fundinho, torço por Ele. Fui muito inspirado por Ele em várias de minhas atitudes, ainda que o medo pudesse ter motivado outras tantas. Se não - se Ele não existir - ... puxa... que pena, viu ? Ao menos a criatura que o inventou e seu cérebro genial sejam capazes de um último esforço criativo antes do grand finale. Mas isso eu só vou ficar sabendo na hora. Calma, meus neurônios. Coração, não se afobe. 

Estamos quase lá. Quase lá.



Por Bob LeMont

11/10/2019

ENTREVISTA DE EMPREGO



- Bom, a gente já conversou bastante...
- É! Nossa... nem senti o tempo passando... o papo tava ótimo, nem parecia entrevista de emprego...
- Ah, hoje em dia as equipes de RH trabalham muito com esse coeficiente de humanidade no trato com os candidatos, sabe?
- Pois é, muito legal. Já dá uma ideia do que a gente vai encontrar na empresa, né?
- Sem dúvida...
- Bom! E daqui pra frente?
- Só aguardar que a gente vai entrar em contato contigo. Em uma semana no máximo. 
- Nossa, que rápido!
- Pra que deixar os candidatos à vaga sofrendo, não é mesmo? 
- Nem me fala, já tô penando há mais de um ano e meio...
- Olha, mas a sua entrevista foi muito boa. Você é uma pessoa extremamente qualificada. Tem experiência, formação, perfil psicológico ideal... agora depende dos gestores...
- Ai, tomara né!
- Confiança porque... eu acho que a vaga é sua!
- Opa! Então tá, eu vou indo porque...
- Ah!!! Só mais uma coisinha que eu esqueci de perguntar...
- Ahm..?
- Tipo assim... você sabe que, nos tempos atuais, por causa das redes sociais, tem muita discussão né...
- Ah... é, sim...
- ... as pessoas lamentavelmente ficam brigando por tudo... música, programa de tevê, time de futebol...
- Uhm...
- ...até política parece que virou briga de torcida, né?
- Sei...
- ... brigam por causa de religião... de cor da pele... com as questões de gênero, né... 
- Pois é...
- Então! ... vem cá.. por falar nisso... você tem, assim, alguma preferência...
- O quê?..
- Alguma tendência...
- Oi?
- Você gosta de...
- Vem cá! Você tá querendo saber se eu sou hétero ou..?
- Não! Rá rá rá!!! Aqui na empresa não tem nada disso. Pirou? Todo mundo é tratado igual, a nossa política interna sobre isso é totalmente desencanada.
- Ah, legal...
- A gente quer saber de você... politicamente, sabe?
- Como?!
- Você seria assim.. uma pessoa mais de centro.. mais de direita.. centro-direita... ou... centro-esquerda... teria um partido de preferência e tal...

Pausa. Olha bem nos olhos da figura do RH. 
Sobe na cadeira.

- Você quer falar de política?? Tá bem. Olha aqui, pessoa do RH! Eu votei a minha vida inteira contra esse país de coronéis e em favor de governos que abrigassem reformas importantes, trazendo ideias novas que beneficiassem especialmente os pobres! Que governasse para quem sente fome, gente sem vez para adquirir casa pra morar, os flagelados, os desfavorecidos de sempre. Votei em líderes voltados para as minorias, que enfrentassem de frente questões de inclusão em amplo espectro. Acredito, sim, no poder do povo, para o povo. Sempre votei contra esses fundamentalistas, fascistas, que odeiam tudo isso que eu acredito e todos que eu defendo. E eu nunca vou abandonar o sonho que eu cultivei por décadas, contra tudo e contra todos. Enfrentado parente chato, chefe escroto, toda espécie de cretino e de cretina que se acha mais foda porque tem grana, porque puxa o saco dos maiorais pra se sentir parte dessa elite escrota, que tá cagando pra pobre. E eu sei que tem muitas empresas aí querendo distância de quem peita mesmo o sistema, que faz greve, que enche o saco de patrão que pisa na bola, que luta por direitos. Olha, pessoa do RH!!! Eu já perdi emprego por pensar desse jeito, sabe?? Olha!!! mas foda-se! Eu sou contra esses merdas todos! Tá entendendo???!!!

Pausa.

- Oi? Oiêêêê... tá tudo bem, meu bem? 

A pessoa, que passou o tempo inteiro calmamente sentada na cadeira em frente à gerência de RH, e que estava há pouco com o olhar fixo na janela da sala, agora parece um pouco desconcertada.

- Uhm?? Opa! Desculpa, eu me distraí um pouco...
- ...pois é, você ficou aí... com o olhar distante... sem dizer nada...
- ...você... é... você... perguntou sobre a minha preferência política, né isso? Se eu gosto de algum partido e tal...
- Olha, pode ficar relax viu?! Parece que você grilou, né? Parou pra pensar um pouquinho - preocupa não, tá? Claro que você não vai perder essa vaga por causa de política, pôxa...
- É...
- Uma pessoa tão qualificada... tão experiente... tão  próxima de conseguir um emprego depois de quase o quê? Um ano e meio, né?..
- .. dois anos e meio...
- Dois anos e meio sem emprego fixo? Nossa!
- É...
- Então?..
- Ahhhhh... eu... 

Respira fundo. Olha para o vazio.

- ...não sou muito fã de política não, sabe...

UM DIA

 
Um dia, somente um dia
Nada será por acaso
Nada será por à toa
Tudo será alegria
Na palavra, na pessoa
Um dia, somente um dia
Tudo de bom, numa boa
Haverá o que não havia
Uma dor que já não doa
Um bem-estar que não destoa
Não será vazia
Tampouco oca
Essa vontade que ecoa
Um dia, somente um dia
Será certo ser torto
Por afeto ou consolo
Antes belo que tosco
Se não completo, ser muito
Nem malvada nem maldita
A Liberdade, revolta
Libertará tudo à volta
Um dia, somente um dia
A coragem é bonita
Feio é quem não acredita
Ainda que tardia
Por todo sempre
Mais um dia



06/10/2019

ODE AO FIGURANTE DESCONHECIDO

Assisti a Grease umas mil vezes. Vamos combinar. Uma merda de filme. 


Uma história sem pé nem cabeça, um texto chulé pra caramba, densidade zero. Mas, pô... eu amo Grease! Menos pela sua dramaturgia - praticamente ausente - mais pela trilha sonora. Certamente, um daqueles filmes que leva a gente pela orelhas. 

Barry Gibb, o bonitão dos Bee Gees, vivia mesmo uma fase mágica. Ele escreveu e produziu a maioria das canções, algo que já havia dado certo antes com os Embalos de Sábado à Noite. Gibb soube traduzir musicalmente, como ninguém, todos os desejos de uma geração. Também é inegável a influência daquela dupla de protagonistas sobre a audiência: John Travolta e Olivia Newton-John formavam o casal mais do que perfeito naquele final dos anos 1970. Eu, que secretamente amava Olivia, só permitia que Travolta lhe cortejasse. Eles eram incríveis juntos. 

E Grease era o grande momento deles no cinema.

Mas lá pela milésima exibição, entre um ou dois suspiros por Olivia, percebi um personagem no qual eu nunca havia reparado antes. Não tinha fala alguma, não namorava ninguém, mas tinha um carisma absurdo. E ele começou a me chamar a atenção. Poderia ser mais um figurante, entre dezenas que participam de musicais nas telas. Mas a performance dele em We Go Together, simplesmente, me hipnotizou. Duvido - se você, como eu, é fã de Grease - que nunca tenha visto ele. É o sujeito de camisa verde, que inventa uma dancinha, obviamente inspirado em Groucho Marx, nesse grand finale do longa. 


Depois que eu percebi esse cara, nunca mais tirei os olhos dele. 

Eu sou fã do Groucho, talvez isso tenha me despertado. Mas havia algo a mais. Uma energia qualquer, um brilho que fazia o cara se destacar numa multidão de extras, e que o tornava parte importante daquilo tudo. Ao menos pra mim. Aí virou meio que uma obsessãozinha: comecei a procura-lo em outras cenas. Fácil. 


Lá estava ele também da festa no colégio, aquela que tem o concurso de dança. Aliás, onde houvesse um rebolado coletivo, ele estava lá no meio. Fazendo a parte de tudo, com a mesma boa vibe que me cativou em We Go Together. Divago. Ele parecia saber que tinha poucos minutos para brilhar. Sem falas, sem protagonismo, sequer coadjuvância. Era um extra, caramba. Estava lá pra ajudar a encher a tela. Somente executando o que sabia fazer de melhor: dançar. 

E ele fez.

Por incrível que pareça, não fui somente eu quem reparou. Uma pesquisa na internet me revelou a admiração que esse personagem anônimo despertava em inúmeros fãs do filme. A busca pelo dançarino da camisa verde retornou uma dezena de artigos. Todos com observações muito semelhantes às minhas. Citavam sua energia, vigor e entrega, que fizeram com que ele saltasse aos olhos do público e ganhasse seus minutos de fama ante celebridades planetárias. O figurante desconhecido já não era mais assim tão figurante. Menos ainda desconhecido. Ele tinha nome.

Daniel Levins.

O artista mereceu citação no New York Times em 2015. O jornal dizia que "Daniel Levins era um dançarino às vezes conhecido profissionalmente como Daniel Levans, que ganhou notoriedade na adolescência na aclamada American Ballet Company de Eliot Feld e como dançarino principal no American Ballet Theatre na década de 1970."  

Ainda graças ao NYT, fico sabendo que ele já havia marcado o público em outro papel pequeno, um ano antes de Grease. Era The Turning Point, com Anne Bancroft e Shirley MacLaine. Esse filme também apresentou Mikhail Baryshnikov ao público em geral. Um longa sobre dança, com dançarinos profissionais fazendo papéis secundários. Nesse ele tinha até fala. E havia na reportagem algo a mais sobre o sujeito. Aliás, era o mote da matéria. 


Lamentavelmente, Levins havia morrido.  

Segundo Eugene Gabriel-Thomas Walsh, marido dele, Daniel foi vítima de uma infecção pulmonar naquele 2015. Tinha 61 anos.

... enfim...

Sim, Daniel Levins estava morto. Mas sua performance no musical de Travolta e Olivia, definitivamente, não havia passado despercebida. Sobre ela, a colunista descreveu: "Na versão cinematográfica de 1978 do musical da Broadway, o virtuosismo energético de Levins como o garoto de verde no final da dança provavelmente roubou o show de John Travolta e de outras estrelas do filme."

Eu não tava maluco. 

O cara realmente tinha algo a mais. Pra mim, pra tal da Anna, e pra outros tantos aí que eu nem conheço. Teve a oportunidade da vida de dar seu show. E deu. Sei que hoje eu assisto a Grease pelo John Travolta, pela Olivia Newton- John, pela trilha sonora inesquecível e!.. por Daniel Levins. 

É, o figurante desconhecido. 

Um pôrra dum extra. 

Mas não um extra qualquer. 

Mesmo sem destaque nos créditos, sem uma ceninha solo sequer, ele teve seu breve momento eternizado pelo cinema. Fez o que sabia fazer, provavelmente com a paixão de sempre. Ou estava num dia inspirado - vai saber? Ele poderia ter passado batido, tantos passam. Mas Daniel Levins não passou. 

Vida longa aos que não precisam de holofotes para brilhar.

Robson Leite


LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...