19/08/2021

PESSOAS

 

Pessoas não são objetos. 

Não podem ser usadas, manipuladas, rotuladas. Pessoas não são lixo, para serem varridas ou jogadas de lado. 

Pessoas não são brinquedos, não são para montar e desmontar, não servem para divertimento particular, não podem ser colocadas na caixa de esquecimento quando nos enjoamos delas, ou quando se quebram por nossa incapacidade de zelar pelo que nos faz - ou, ao menos um dia, nos fez - bem. 

Pessoas não são acessórios, para desfilarmos com elas por aí por motivos fúteis, nem para serem deixadas penduradas por não serem adequadas a outras pessoas, pelos mesmos motivos. Pessoas não são retas, tortas, curvas. Porque pessoas não são apenas formas.

Pessoas são conteúdo.

Pessoas são música. Pessoas são dança. Pessoas são poemas. Pessoas são cinema, TV, teatro, literatura. 

Pessoas são seus sonhos. Pessoas são seu trabalho. Pessoas são sua família, seus amigos. Pessoas são suas buscas - buscas que costumam até ser melhores do que a arte do encontro. 

Pessoas gostam de movimento - na rua e na mente. Pessoas são seus olhares. 

Pessoas são o que aprenderam e ainda vão aprender. Sobre tudo e sobre nada. Sobre a loucura e a razão. Sobre Freud e Nietzsche. Sobre Pessoa e Leminski. Sobre Chico e Caetano. Sobre sexo e sensualidade. 

Sobre os mistérios da vida na internet, onde demônios e anjos transitam vestindo apenas suas verdades - que não são, necessariamente, verdades. 

Pessoas que promovem gestos respeitosos, merecem respeito.

Pessoas que são livros abertos, merecem ser lidas. 

Pessoas que são a diversidade, merecem o diverso.

Pessoas deveriam se ver mais numa canção, numa obra de vida. Deveriam sentir mais o corpo no Corpo, o espírito na voz de Milton.

Pessoas deveriam se encontrar no sorriso, na lágrima ou no silêncio que provocam.

Enfim, as pessoas são preciosas. 

Não pelo dinheiro que ostentam, mas pelo valor que dão à simplicidade das coisas, do viver. Ou que aceitam a complexidade de tudo, sem complexos. Preciosas pela atenção que emprestam a outras pessoas, em trocas justas de gentilezas. 

E isso é raro. 

E tudo que é raro, dizem, é precioso.

Alguns de nós não sabemos dar o devido valor. Seja pra nós mesmos, seja para outras.

Pessoas.





BABACA

 

Foi pra rua, caminhar, como fazia desde o começo do ano. 

Parou de fumar no ano passado, está bebendo menos. Comer em excesso já não é problema há 10 anos: fez a bariátrica, não tem como aderir a farra alguma na cozinha. A vida mais sadia era a meta pro ano novo. Caminhar, aprender a respirar. Encontrar um ponto de equilíbrio.

Que ano! Brigou com meio mundo por causa de eleição. Mas não dava mais pra aguentar aquela gente estúpida, falando aquelas bobagens todas, defendendo político que não tão nem merece defesa. Por conta disso, não falava mais com vizinhos, colegas, cunhado, e até com o irmão mais velho.

Clima ruim nas casas dos pais e dos sogros. É. "Natal e Reveillón vão ser uma merda", pensou, enquanto zerava o cronômetro pra iniciar a caminhada. Deu dois passos e sentiu um toque no ombro esquerdo.

Foi abordado por um rapaz.

- Você não é o Lugui? Aquele youtuber?

Não lhe pareceu, a princípio, ser alguém conhecido. Chamou-lhe pelo nome que usa em suas redes sociais e acertou na profissão, que usa como referência nos perfis: deve ser um seguidor. 

- Eu mesmo! - respondeu, sem olhar nos olhos para não criar uma falsa intimidade, mas devolveu o sorriso que recebera. Fingiu estar com dificuldade para zerar o cronômetro no relógio de pulso.

O rosto do rapaz mudou diante da confirmação. De simpático para... como descrever? Vazio? O olhar já não dizia nada. A respiração pareceu um pouco mais ofegante que o normal, mas poderia estar caminhando também. Afinal, era uma pista pública, feita para isso. Apenas. Não havia mais expressão alguma. 

Um breve silêncio precedeu o estalo.

Pá!

Dois segundos depois, conseguiu fitar o rapaz nos olhos. Mas sentiu a queimação na boca do estômago e quem estava em volta sair correndo. Novo estalo.

Pá!

Antes de cair, viu a arma na mão esquerda. Sentiu que desfalecia. Um filme da vida foi passando diante das vistas. Cenas da infância, da juventude. Romances que não deram certo, amores eternos. Viu nitidamente os pais, a esposa, a filha que faz intercâmbio no Chile. Até as brigas online. Aquele cara estranho, que começou a seguir você em cada postagem. O que tinha olhos com cores diferentes. Louco. Bloqueio nele.

Pá!

Já no chão, olhou pra cima. Viu seu assassino ainda preparar mais um tiro. Voltou a mira-lo bem nos olhos, como se procurasse uma explicação, um motivo. Aqueles olhos! Um azul e outro verde. Heterocromia, pesquisou. Raro. O louco que lhe ameaçava, pelo que dizia a respeito do candidato dele, também tinha isso... dizia.. coisas!.. deu... medo... foi melhor... bloquear.. aquele... maluco...

Pá!

A última imagem foi a postagem que encerrou o assunto entre eles nas redes sociais. "Cara, cansei dessa palhaçada!!! Pare de me seguir, por favor!!! Vou dar block em você, seu fascista covarde e escroto! Seu babaca!"..

Pá! 

O rapaz conferiu se Lugui estava mesmo morto. Jogou a arma do crime, já sem balas, dentro do rio que passa bem ao lado da pista de caminhada. 

Uma motocicleta fez bastante barulho antes de parar ao lado dele. 

Subiu na garupa e, antes de sumir na avenida, deixou claro para o cadáver (como se isso fosse possível).

- Põe na conta do "babaca"!!! Seu trouxa!!!!

Cuspiu sobre o corpo e partiu.
Nunca mais foi visto.

18/08/2021

O OUTRO LADO

 


Pessoal, cheguei!

Não me perguntem como foi a viagem. Dormi o tempo todo. Se o serviço de bordo foi bom, desconheço. Na verdade, não me lembro de ter subido em avião, navio algum. Sei que parti. De algum lugar pra algum lugar. No começo as coisas ficam muito, mas muito confusas. Pra vocês terem uma ideia, eu mal conseguia lembrar meu nome. Um cara lá apareceu aos berros, me chamando. Gritava: "oh Boninho! Oh Boninho! Aqui, rapaz!" Me senti diretor da Globo.

- Eu falei Bininho, pôrra!

Ah sim. Bininho. Desculpem. Eu me lembrava vagamente desse nome. Apelido, né? Mas esse rapaz parecia me conhecer muito bem. Foi a primeira pessoa que vi depois daquela luz fortíssima na minha cara. Caramba! Deve ter sido o trem que me trouxe. 

Ou seria um ônibus? Enfim! 

O cara foi o primeiro a me ver e correu pra me abraçar. Opa! Falei pra ir com calma e usar de certo jeito, porque tava com o corpo meio chumbado ainda. 

Como se eu tivesse passado os últimos meses enfurnado na cama, sabe?

- Puta que pariu! Esquece isso!
- Esquecer é comigo mesmo. Minha memória não tá legal mesmo não.
-Acredite: cê vai melhorar logo. Puta merda! Você vai lembrar de cada coisa!

É, o cara falava palavrão pra caramba. Mas me pareceu familiar. Muito.

Se me perguntarem onde eu estou, eu digo assim: é um lugar que não dá muito pra descrever, não. É qualquer lugar e é um monte de lugar que eu conheço. Eu sei que olho pra um lado e vejo os barrancos das Tabocas. Olho pro outro, vejo o Cristo Redentor lá ao fundo. Quando eu cheguei, parecia que tava tendo uma festa, algo assim. Tinha um monte de gente olhando, cochichando. Achei que eles tinham que ter mais cuidado. Parece que tem ou tinha uma gripe aí, que é muito perigosa. 

- Chama Covid. E não é gripezinha, não, viu? Mas aqui não tem nada disso não. Graças a Deus.

A moça que me corrigiu me deu o braço, enquanto aquele outro cara seguia abraçando pelo ombro. Ambos me conduziam no meio do que, de repente, já era uma quase multidão. Rostos que iam ficando cada vez mais familiares. Os de meus acompanhantes, inclusive. Era meio angustiante, mas a moça tentou me consolar.

- Calma. Tá confuso, né? Eu lembro quando eu cheguei. Estava igualzinho a você. Mas a cabeça melhora rápido.
- Você lembra, Lenita?
- O quê?
- Se você já cagou hoje!?

Implicavam muito um com o outro. Ao menos, os dois riam um da bobeira do outro. Parecia implicância antiga, coisa de irmão. Pessoal, mas eles me faziam, de certa forma, sentir em casa. Eu confesso que... estranhamente, é difícil explicar... mas eu tava com saudades, não sabia exatamente de quem. Mas iam surgindo nomes. Rostinhos. Giovanna. Diego. Luiza. 

- E tem também o Rafael, pôrra! São seus netos.
- Calma, não espera molhar o bico. E me respeita que eu sou mais velho que você, oh Burro!

Olha pessoal, me deu aquele estalo. Lembrei dele. Vocês acreditam? Aquele bigode, aquela boca suja. Pessoal, era o Wilson! Meu irmão mais novo. E a moça, sabe? Era a minha irmã mais nova, a Lenita. Caramba, não via esses dois havia tanto tempo. Fiquei até emocionado na hora. 

- Esse pessoal todo veio aqui te receber, Bininho.
- Puta merda. Você demorou demais, pôxa!

Fiquei meio tonto, olhando em volta. O cenário daquele reencontro realmente mudava. O tempo todo. Tinha hora que parecia que a gente estava no salão do Clube Leopoldina. Noutra hora, era o Cutubas! Eu piscava e, do nada, era como se estivéssemos todos na Rua do Catete. Ou na subida da Rua Santa Cristina. Ou na rua da Glória. Ou em JF. Ou em BH. 

Estávamos em toda parte e em bom lugar. 

A sensação era de paz, meus queridos. Me senti muito bem acolhido. E aquela pequena multidão, eu fui entendendo. Eram gente amiga, irmãos por afinidade, que fizeram questão de vir me receber. 

- Demorou, hein, Colibri?!

Era o Ciro Monteiro, tocando sua caixinha de fósforos, chamando pra tocar violão. E o Licinho tocando Tuba, vestido de Rei Momo. Com o Horácio, claro: um não anda sem o outro! Rostos, muitos rostos, ganhando contornos de saudades queridas. Num cantinho, eu juro que vi!, os Anjos do Céu ensaiavam uma vocalização e me chamavam pra acertar a harmonia. Fiz assim com a mão pra eles: já vou! Já vou! 

E vocês nem imaginam: havia um palco montado e era a Leopoldina Orquestra completa. Tocando lindamente, em minha! minha homenagem. Dá pra acreditar nisso?! E o crooner?! O sujeito era muito bom.

- É o Orlando Silva, pôrra!

Era mesmo. E o Wilson continuava o desbocado de sempre.

- De vez em quando o Orlando aparece pra cantar com eles, Bininho. Mas sempre disse que precisa de dois violões pra acompanha-lo.

Entendi nada. Já tinha um lá no palco, ué. E tocava pra caramba. 

- É o papai, Tio. O Bebem.

Não sei o que me fez chorar. O sorriso da Delizete, carinhosa e tão feliz de poder me abraçar quanto eu a ela novamente, ou se chorei por reencontrar meu mestre/cunhado, fazendo o que mais gostávamos. 

Mal podia esperar pra subir lá e acompanhá-lo. 

Música!!! Queridos, eu só pensava em como seria bom cantar novamente com eles. Todos eles. Com a Maria , o Zezé, o Peroba, a Doce, a Nina, o Belinho, o Palimércio, ao lado de seus pares eternos. Sim, eu me lembrei de tudo. 

E de todos. 

Inclusive de vocês, filhos queridos. Luciana e Robson. Mandem meu carinho especial ao Fagner. Digam pra Elo que já encontrei o Bahia e até tomamos uma cervejinha juntos. Nem sabia que ele tinha viajado também. Era o único da minha turma aqui com uma bandeira do Atlético.

E o que dizer pra minha doce Maria Dênis? Ela deve estar muito triste, não é? Por favor, cuidem dela. Falem que já encontrei com a Dona Filhinha aqui. Ela está ótima e manda beijos pra todos. Sua mãe vai adorar saber. 

Quanto a mim, estou muito bem agora. A programação da semana promete ser intensa, em minha homenagem. Podem ficar com inveja: amanhã tem show com Os Cariocas, Cartola e Nelson Gonçalves. Uhm!!! Parece que o Tom Jobim e o Vinícius vão dar uma canjinha - o Ciro me garantiu.  Gente! eu me lembro de cada acorde, cada posição no violão, todas todas as melodias! 

Minhas lembranças voltaram! E querem saber? não são mais lembranças. São outra coisa. E estão por toda parte. É como se elas, minha família -aqui e aí - e eu, fôssemos um só. Enfim, TODOS juntos. Pra quantas fotos quisermos. Com todas as canções necessárias.

Para sempre! 

Com amor

Albino 

 

Ps: acho que vou escrever mais um livro. Tô me lembrando de tanta coisa! Alguém conhece um bom psicografador? Deixa. Eu me viro.

LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...