16/10/2018

REALITY




- Ei, você tá bem?

Como estaria, após quase 48 horas de prova? As pernas doem. As costas, os pés. Respirar dói. Mas ele queria porque queria o tal prêmio final: um carro do ano.

- Eu? Tô ótimo! – respondeu, displicente.

Ela sabe que ele está mentindo. O Tom é um cara muito determinado e, secretamente, a Lígia o considera incrível. Mas parece a ela um tanto inconsequente. Louco mesmo!

- Você lembra como ficou naquela outra vez, não lembra?..
- Lígia! Eu não vou desistir... – interrompe, grosseiramente.
- Ai! Deixa de ser grosso, Tom! Tava só dando um toque...

Tom respira fundo. Não quis ser grosso. Apenas o estresse o dominou, misturando emoções. Ele não quer chatear a Lígia - ainda mais naquela situação.

- Não tô sendo grosseiro, caramba... desculpa...
- Tá... tá... eu também tô de boa...

Os dois estavam há horas  dentro daquele carro. A produção paralisou a prova há 15 minutos, oferecendo um isotônico para cada pra repor eletrólitos, sais etc. Já são duas noites sem dormir, nem ir a banheiro. Comida e água nem pensar. Prova de resistência. A mais longa da história do reality.  

- Acho que vou tomar dez litros de água quando eu sair daqui!
- Eu vou comer a geladeira inteira, bicho.. nossa... que fome que eu tô...
- Você sempre guloso, né?
- Falou, sedenta!!!

Os dois riram pela primeira vez em horas. Na verdade, em semanas. Começaram o reality como namoradinhos, mas não durou. Ele artista plástico, 28. Ela advogada, 32. Mundos diferentes, mas pareciam estar se dando muito bem, num approach gradativo.

Acontece que o Tom foi flagrado num agarramento sensual com a tal de Tábata, fisioterapeuta, 25, em uma das festas da edição. A Lígia não gostou. Nem o público. A Tábata saiu com 99% de rejeição da audiência. Tom e Lu, desde então, nem se olham mais.

- Olha pra você! Você tá bem melhor do que eu. Mais inteira.
- Para. Você tá superbem também. É que eu malho, né...
- É, você se cuida... eu sou avacalhado demais... mas sou det...
- ... determinado! Demais! Cara, tá todo mundo vendo isso lá fora. Tenho certeza.
- Ah, Lígia. Você também, né? Pôxa. Em todas as provas eu vejo você se matando pra conseguir uma vantagem.
- É, eu preciso dessa grana...
- Eu sei... eu me lembro...

Lígia contou a ele dos pais que perderam tudo em golpes por estelionatários oficiais nas aposentadorias. Ela, mesmo desempregada, tentava dar uma força. Aliás, perdeu o emprego quando a empresa em que trabalhava foi fechada durante operação da PF. Sabia que o chefe era um canalha, mas precisava trabalhar, né? A Lu sabia de muita patifaria, acabou sendo testemunha chave. Mas só ganhou uma consciência tranquila. O que não é pouco, mas não enche barriga.

- Minha vida não foi fácil, Tom...
- Eu sei... eu sei...

Depois ela fez de tudo. Até dirigiu para aplicativo. Um noite foi quase violentada, teve o carro roubado. Por sorte, a polícia tava passando e impediu. Mas ela largou. Tentou recolocação no mercado, mas não se encaixava em nada. Foi pressionada pelos pais: “Uma moça linda, vai botar as outras no chinelo!” Resolveu arriscar se inscrevendo no reality. E o programa virou tábua de salvação. Por isso aguenta 48 horas de provação por um carro. O que, caso não ganhe o prêmio principal, já ajuda.

- É! É um carrão, né? Deve valer o quê?
- $90 mil, brincando...
- Como você sab... ah!

Ela recorda que Tom contou sobre a história de ser artista plástico. Fez muito sucesso no início da década com lindos trabalhos em madeira e pinturas primitivistas. Retratava figuras humanas, bichos, natureza de um jeito muito peculiar. Uma relação com formas e com vidas, tudo muito delicado. Disse que ganhou prêmios, dinheiro. Mas que, um dia, travou.

- Eu perdi o tesão pela vida. Não consegui criar mais nada. Não saía.
- Mas por quê? O que mudou?

Não conseguia mais entalhar nada. Disse que lhe veio um vazio imenso e que, por isso, não conseguiu mais abstrair. Teve que se virar pra ganhar algum dinheiro. Mixaria. Tom fazia bico corretor de imóveis, vendeu carro, trabalhou em escritório, até pintou paredes. Bonitão, topou ser modelo. E foi assim que, segundo ele, veio parar no reality. A produção achou aquele homão todo tatuado na rua, viu que ele se encaixava.

- Isso aqui é muito escroto, mina...
- Oi?
- Escroto. Tudo isso.

Soa o alarme. Cortam o som do estúdio. Tom é advertido pela produção, que não gosta de críticas. Mas não sossega. Lígia tenta acalma-lo.

- Calma, Tom... tá acabando...
- Tá acabando com a gente. Nós não somos gente aqui, Lu. Somos personagens. De uma novela.
- Eu sei, bicho.. mas olha a grana...
- Eu penso nisso todo santo dia, Lu! Não sei o que eu vim fazer aqui não...

A produção segue tentando adverti-lo sobre o comportamento não condizente com o que foi acertado em contrato com todos. Mas o Tom não quer saber.

- Você me disse que veio aqui pra se encontrar...
- E você me disse que precisava ajudar sua família...
- ... e que se perdeu quando perdeu sua arte...
- ...e você faria qualquer coisa pra ganhar...

Pausa. Silêncio no estúdio. A produção entende que a conversa não seguirá na direção da crítica e volta a abrir microfones, enquanto decide o que fazer se ele voltar a reclamar. Justo hoje o chefão resolveu desaparecer e nem atende celular.

- A gente se dava bem no começo do programa, né?
- Até você se engraçar com a Talita...
- Tábata!!! E não rolou nada entre nós.
- Sei...
- É sério! Aquela menina queria armar confusão com você. Pra aparecer, pra ganhar fama, sabe? E eu estava bêbado...
- Ah, certo! A bebida, sempre ela. Nem vem, Tom!
- Nem vem você! Você também ficou muito bêbada naquela noite!
- Eu vi vocês dois naquela pegação, enchi a cara e fui dormir. Boba que eu fui. Devia ter ficado com o Tomás.
- O músico? Ele saiu no programa seguinte. Tremendo mau caráter.
- E você é o que, cara?

Tom para, respira.

- A Tábata aproveitou da minha bebedeira e se jogou em mim. Eu sou uma pessoa muito educada, Lu. Eu seria incapaz de um gesto grosseiro, mesmo bêbado.
- Sei...
- Tanto que ela saiu na primeira votação depois, Lu. Aquela menina só queria confusão.
- Sei...
- Olha pra mim e diz isso! Que você sabe!

Produção atenta com a reação súbita. Aquilo podia? Algum risco de agressão? Nossa, o chefão matava eles se acontecesse. Cadê o cara? Ligam e nada. Putz. Que prova que não acaba!!!

- Eu falo na sua cara, sim, Tom! A gente parecia ter se dado superbem. Nossas conversas noite adentro, a gente se abrindo, se divertindo junto. E você caiu em tentação na primeira chance?
- Mas eu não caí! Eu deixei a Tábata lá, falando sozinha, e fui atrás de você. Mas você não quis falar comigo!
- Não tinha nada o que dizer. Você é livre, faz o que quer.
- E quer saber? Foi o que eu pensei, quando você me mandou ir embora. E eu fui mesmo. Mas não fiquei com a Tábata.
- Não ficou com ninguém. Foi com sede ao pote, perdeu as duas.
- Você que tem sede de tudo... bebe demais...
- Ah, vai me criticar agora, vai? E você, que come que parece um tratorzinho...
- Não tô criticando. Você que tá.

Silêncio breve.

- Mas que eu tô com fome, tô...
- E eu com uma sede...

Os dois caem na gargalhada. A produção idem. Um momento de relax, enfim. Alguém decide ir lá fora tentar uma nova ligação pro big boss, que o sinal de celular no switcher não tava bom. E o Tom e a Lu lá, quase 49 horas dentro daquele carrão.

- Posso perguntar?
- Claro...
- Por que você achou que iria se encontrar aqui, cara? Isso é um reality show!
- ...
- Fala...
- ...
- Tom, você prome...
- Por sua causa!

Susto geral. Nos poucos heróis que permaneciam assistindo em casa pela web, no bunker da produção e dentro do carro.

- Para, Tom!
- Eu fiz um serviço uma vez numa firma...
- Sei...
- Pintei as paredes lá. Sabe?
- ...
- Uma firma de advocacia. Picareta. O cara acabou preso e tudo...
- ...
- E eu vi uma menina lá. Ela era linda. A mulher mais linda que eu já havia visto na vida, sabe? Eu fiquei encantado com ela... eu vi a beleza... e o belo que me faltava, uma janela para as coisas lindas que a vida tinha a oferecer, e eu me achei ali... naquela lindeza de mulher...
- ...
- Eu comecei... eu comecei a seguir ela... de longe... eu não consegui ficar sem olhar pra ela, entende?
- Cara, é verdade isso que você tá falando?
- Daí que ela começou a trabalhar com Uber de noite... e eu ficava preocupado...
- ...
- Uma noite eu saquei que os caras que entraram no carro dela estavam a fim de treta. Eu chamei a polícia, dei a placa e avisei, anonimamente. E tavam mesmo, atacaram ela.
- Tom! Não épossível...

O Big Boss finalmente aparece bufando no switcher, com o celular na mão. E tá com muita raiva.

- É isso mesmo que eu tô vendo no conteúdo on demand?! Eu ligo a pôrra do celular e isso tá rolando já faz quanto tempo?! Esse cara era stalker da Lu? Como que deixaram esse maluco entrar no meu programa, caralho?! Para tudo!!! Para!!!
- Calma, chefão! Olha essa audiência... – diz o produtor, mostrando os números da madrugada.
- ...
- ...
- Não é possível.
- Trend Topics mundial essa DR, chefe! – observa outra produtora mostrando outros relatórios.
- ...
- ...
- Tá. Vamos ver onde isso vai parar... – opta o chefe, enquanto serve-se de um café.

Lígia está devastada com a história.

- Você... me... salvou..?
- ...e quando eu descobri que ela tinha sido selecionada pro programa deste ano, eu pirei... pirei, cara... eu tinha que estar perto dela...  eu não ia dar conta de ficar olhando só pela tela... fiz de tudo pra participar também...
- Mas como você descobriu que eu... que ela... ia participar? É segredo, só os produtores sabem...

Mesma pergunta no switcher. A produção noturna nega. Talvez alguém do turno da manhã ou da tarde? Big boss diz que cabeças vão rolar.

- Não importa como. Importa que eu consegui. Putz! E tava aqui, perto de você, a gente conversando, se conhecendo... e PÁ!!! eu perdi você logo na primeira festa...
- Tom!!! Mas.. mas... Por que não contou antes?
- Porque me dei conta naquela noite idiota da festa... da Tábata... de tudo, cara... de que eu sou livre, você é livre, todos nós somos livres para decidir sobre tudo nas nossas vidas.
- Cara, você ...
- Minha determinação nas provas acompanhou a sua. Sempre. Eu só queria estar perto de você, Lígia. Mesmo se você  me quisesse.
- Tom?..
- A gente é livre, Lu. Livre pra fazer o que quiser! Tá claro pra mim agora, bicho! Não vai ser um programinha de quinta categoria que vai dizer se a gente vai ficar junto ou não, tá ligada?

A campainha soa, com mais uma advertência, mas o programa segue. A audiência está altíssima.

- Tom, você tá surtando. Calma! Deve estar desidratado...
- Lígia! Eu juro, cara! Eu adoro você desde aquele primeiro dia lá na sua empresa. Foi mágico. Fiquei encantado com seu jeito, sua beleza. Eu comecei a pintar de novo, entalhar de novo...

Ele tira do bolso alguma coisa. A produção fica aliviada – não é uma faca. É algo pequeno, que cabe na palma da mão.

- Eu fiz esse entalhe pra você. É você. Minha musa.
- Oh. É lindo. E parece mesmo comigo, Tom! Você não me disse nada.
- A gente é livre, Lígia. Pra viver o que quiser e como quiser. Eu decidi esperar pelo momento certo. E quer saber? Cansei dessa pôrra...
- Cansou?
- Cansei! Foda-se o reality. Essa realidade fingida, inventada, onde as pessoas não são tratadas como pessoas. Que passam horas da vida trancafiadas, em vez de sair por aí, vivendo cada momento. As pessoas se tornaram escravas de suas ambições e se sujeitam a tudo, até à perda provisória de liberdade por causa de dinheiro?! Pôrra!!!

Os dois se entreolham. Ela ainda chocada. Ele elétrico, como se tomado por uma iluminação sobre a vida.

- Sai comigo? Vamos? Vamos viver isso que a gente sentiu um pelo outro lá fora? Na vida de verdade?

Lígia sorri com ternura.

- Vamos sair desse carro? Juntinhos?

Quando Tom deixa o carro após 48 horas 27 minutos de prova, é prontamente recebido pelos auxiliares de estúdio. Eles o abraçam e lhe servem mais isotônico, para repor as horas de abstinência. O corpo dói inteiro. Pernas, braços, costas. Tom sente que vai vomitar, mas segura. Está, ao mesmo tempo, exausto e eufórico.

Nem repara que a Lígia continua no carro. E quando isso acontece, cai em si.

- Lu? Mas...
- Desculpa, Tom... mas eu quero esse carrão! Eu quero esse prêmio! Eu quero tudo!!! Eu tenho que ajudar minha família, pôrra! Eu tenho que me ajudar, porque ninguém merece essa pindaíba que a gente tá. Eu fui ser boazinha com a Justiça e tô qui, Tom... com uma mão na frente e outra atrás. Chega!

Tom está confuso. Debilitado demais para reagir com qualquer palavra.

- E você é doido, cara!  Fica longe de mim! Digo mais, hein: eu vou te indicar pro paredão! Sai daqui! Seu stalker! Doido!

E lá vai o Tom, caminhando com dificuldade, escorado nos auxiliares mascarados da produção, deixando o estúdio de prova desolado. Continuará filosofando sobre liberdades individuais? Estará eliminado? A edição na TV aberta vai mostrar isso tudo?  Enquanto isso, a Lígia comemora mais uma vitória e sente que aqueles milhões se aproximam.

Quem será que vai deixar a casa mais vigiada da TV brasileira? Rá!!! O Ibope tá bombando, cara!!!






Por Bob LeMont

09/10/2018

ALEMÃO



- Promete?
- O quê?


Silêncio.


- Promete?


Silêncio.

- Promete?!

Irritação.

- O quê?!..

Palavrão.
Suspiro.

- Que não vai esquecer de mim... nunca... nessa vida?!

Silêncio. 
Entreolhares. 
Sorrisos.
Cara séria.



- Promete pra mim que não vai esquecer de mim... nunca... nessa vida...

Sorriso.

- Oh, meu amor! Como é que eu ia esquecer de você?

Beijo na testa. 


A TV distrai por um segundo. 

Suspiro. 


- Promete mesmo?

Sorriso.

- O quê?

Suspiro.




por Bob LeMont

02/10/2018

SOBRE CRAVOS E ROSAS




Suspeito: Não é nada disso... AI!!!... é tudo confusão da cabeça dessa louca aí...
Vítima:  Calma, meu filho...
Delegado: Silêncio, por favor, gente? O caso é grave. Houve denúncia, temos evidências. Eu e a detetive tamos fazendo essa diligência aqui na casa do senhor pra tomar esses depoimentos, tá certo? 
Suspeito: Tá suave..
Delegado: Seu nome, por favor?
Suspeito: Cravo...
Delegado: Nome da vítima?


Silêncio.

Detetive: Rosa... essas são as fotos dela feitas no exame de corpo de delito, doutor...
Delegado (cobrindo os olhos): Credo... ela tava... nossa... praticamente, despedaçada!
Detetive (para o suspeito): E ele disse que foi só uma briguinha, debaixo de uma sacada...

Suspeito: Foi nada não, gente... AI!!!...
Delegado: O senhor está doente?
Suspeito: Não é que... Tô com essa ferida, aqui... tô bem não... culpa dela!!!
Vítima: Calma, meu filho...
Detetive: ((sussurrando)) Um cortezinho besta desses....
Delegado: E essa senhora, Detetive? Ela é..? 
Detetive: Tá na cara, doutor. É a vítima, né... mas... ((confidenciando)) ela tá querendo retirar a queixa...
Delegado: O quê?! É verdade, dona..? ((procura o nome no relatório))
Vítima: Rosinha... Rosa, mas pode me chamar de Rosinha...
Delegado: Dona Rosa... puxa vida... retirar a queixa?... e depois de tudo que aconteceu, a senhora ainda resolve... sic... resolve visitar o Sr. Cravo?
Vítima: Pois é... ah... ele tá dodói, tadinho... ele não é má pessoa, não...
Detetive: Mas não foi a primeira nem a segunda vez, não... a vizinha da sacada de cima disse que isso acontece faz tempo, viu...
Suspeito: Olha, doutor! Eu estou ferido. Foi legítima defe...


Nem concluiu... o Cravo desmaiou... e a Rosinha ficou ali, chorando.

Moral da história: quando as Rosas não falam, os Cravos continuam por aí... 

Ferindo e despedaçando...




por Bob LeMont

LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...