07/09/2019

MORCEGÃO


Brasil, em algum lugar no meio da amazônia.

As portas da penitenciária vão fechando às costas a cada avanço do fiel escudeiro. Os sons daqueles prisioneiros - homens sádicos,  a maioria de loucos - berrando palavras incompreensíveis, não parecem assustá-lo. Por detrás da aparência frágil de um homem supostamente sexagenário, está um nobre servidor sem medo e fiel a seu empregador. Não à toa. 

Alfreddi está a serviço da família há décadas por conta disso.

Ele caminha lentamente pelo longo corredor de Arkam 2, cujas luzes piscam por falta de manutenção e emprestam um atmosfera ainda mais assustadora ao lugar. Carrega uma maleta dessas de viagem, debaixo do braço. Está claramente desconfortável. Aquela instituição foi especialmente construída para abrigar prisioneiros insanos e de alta periculosidade. 

Não alguém como seu patrão - o milionário Brussi. 


Os seguranças até fizeram uma - breve - revista na entrada do presídio. Mas teve vista grossa, claro que teve! Sabiam, pelo vestuário, a quem o velho representava. O terno de corte clássico, com gravata combinando com lenço e meias, além de sapatos italianos, impecavelmente polidos e engraxados. Claro. 

Já davam a entender que ele estava junto com gente graúda. 


Ao adentrar na ala reservada para o encontro, Brussi e Alfreddi trocam olhares brevemente. Antes que falem qualquer coisa, o prisioneiro faz um meneio com a cabeça, apontando para o teto. Alfreddi logo percebe que estão sendo monitorados por uma câmera. Tranquilamente, sem gestos bruscos, parece consultar a hora em seu relógio de pulso. 

O sorriso do mordomo é a deixa para o início do diálogo.
 
- Estamos seguros, Alfreddi?
- Sim, patrão Brussi. Agora os guardas estão assistindo a um "encontro" nosso em computação gráfica, nada ameaçador.

Numa sala próxima, seguranças penitenciários nem perceberam quando o serviçal acionou, apenas pressionando um botão escondido na manga do paletó de corte sofisticado, um aparelho capaz de gerar falsas imagens do encontro entre eles.  

Sim, o computador da caverna possui recursos para construir esse tipo de farsa para despistar olheiros.

- Patrão, se me permite a sinceridade... 
- Não estou muito pronto para diálogos sinceros hoje, Al... 
- ... foi um gesto em demasia estúpido...
- ...freddi?!
- ... senhor... se deixar prender assim foi algo bem idiota... 
- Como se diz? 
- Patrão Brussi!
- Assim é melhor. Trouxe o que eu pedi? 
- O senhor é o Morcegão. Deveria dar bons exemplos...
- ...trouxe? - insiste

Morcegão. O alterego do playboy multimilionário que, durante o dia, aparenta ser um grande especulador financeiro, dono de empresas, atuando em diversos setores da economia brasileira. Durante a noite, no entanto, veste uma fantasia que esconde sua verdadeira identidade e persegue criminosos, colocando-os atrás das grades. Bem.

Agora é ele que está preso.

Alfreddi mexe na maleta que tem a tira-colo. Poderia sacar de lá uma ferramenta qualquer para facilitar a fuga do patrão. Mas era apenas realmente o que Brussi pediu: uma garrafa de whisky. Serve seu conteúdo ao patrão num copo com gelo vindo do mesmo lugar. 

Junto com a dose vai um olhar de repreensão do velho serviçal.

- Você sabe que eu poderia sair daqui a hora que eu quisesse... - diz, bebericando - ... caramba, eu precisava disso...
- Graças às suas habilidades de "vigilante", senhor?
- Não. Graças ao dinheiro, Alfreddi!
- Isso aproximou o senhor de supervilões.
- Eu não estou próximo de nenhum bandido. Eu uso esses vermes.
- E agora está aqui, preso com um monte deles, por causa disso. Foi pego pela Polícia Federal, patrão Brussi!
- Sabe que eu sou inocente...
- Eu sei?
- O Juiz está por trás disso. Você sabe muito bm pra quem ele trabalha.
- Ele quer o Molusco. Apenas o Molusco.
- Ele já tem o Molusco! Agora ele e as pessoas por trás dele querem somente Poder. E isso eles compram com meu dinheiro. 
- Ora, mas esse expediente não é novidade para o senhor...
- Alfreddi...
- ... que comprou muita gente. Deputados, senadores... seus negócios só se alavancaram graças às propinas pagas...
- O Brasil funciona assim, Alfreddi. Nós sabemos disso. Fiz isso para poder continuar combatendo o crime.
- Deixe eu entender: o senhor combate o crime.. praticando o crime? Pelo dinheiro, simplesmente?
- Alfreddi, você acha que eu pago a gasolina do morcegomobile com o quê? De onde você pensa que vem a grana do IPVA daquela mansão? Como pagamos a conta de luz da caverna? Aquele maldito computador puxa muita energia, sabe?... e toda essa tecnologia - que estamos usando neste exato momento com os guardas - não sai de graça também...
- Patrão Brussi...
- Chega! Sabe por que eu não te mando embora? Porque você me criou desde criança... foi como um pai pra mim... mas não tem o direito de ser tão sincero assim comigo. Não agora! A situação é delicada. Agora eu preciso do dinheiro pra sair daqui, Alfreddi. Pague a fiança e vamos embora...
- Sinto muito, mas não posso.
- Você sempre tão ético, não? 
- Seu pai deve estar se...
- .. contorcendo na tumba? É isso que você vai dizer? Justo sobre o meu pai? Memória curta, não? O Morcego só existe por causa dele, Alfreddi. Não se esqueça.
- Ele não criou o Morcego. Ele criou o senhor. O Morcego foi uma resposta dura para um momento duro. Violência não se resolve com mais violência. Eu sempre lhe disse isso.
- Não me venha com lição de moral, velho! Você sabe que não posso deixar barato o que fizeram com meus pais.
- Vingança nenhuma vale a pena. Deveria ter buscado a Justiça pelas vias tradicionais ao invés de faze-la com as próprias mãos.
- Justiça? Aqui é o Brasil, Alfreddi! Alguns dos caras malvados que eu persigo usam toga!

Ouve-se um bip em crescente. A bateria do dispositivo que gerou a distração eletrônica está acabando.

- Temos mais cinco minutos. Onde está? Preciso em notas de 10 e de 50...
- ...eu não trouxe dinheiro algum, patrão Brussi.
- Como? Alfreddi, eu preciso pagar os guardas...
- ...eles bloquearam todos as nossas contas, senhor...

Pausa.

- Mesmo as secretas?
- As da Suíça foram esvaziadas. Eu sinto muitíssimo.
- Não é possível... - desacredita, praticamente engolindo whisky e gelo juntos.
- Finalmente conseguiram tirar seu único poder de verdade, Patrão Brussi.
- Droga...
- O senhor está pobre. Totalmente pobre.
- Caramba! Bom... ao menos você finalmente vai poder se aposentar, Alfreddi...
- Com essas novas regras da Previdência? Eu vou ter que arrumar outro milionário para servir até os 100 anos, isso sim...
- Droga, droga, droga...
- Não vai ter jeito. Se quiser sair daqui... vai ter que assinar aquela delação, Patrão Brussi.
- Eles querem que eu entregue todo mundo, Alfreddi! TODO MUNDO...
- Todo mundo, não...- balbucia - só o Molusco já resolve...

Brussi respira fundo. Sabe muito bem quem está por trás de tudo isso.

- Maldito Palhaço!


por Bob LeMont


LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...