20/07/2020

INVISÍVEL

 
Sentia-se um rejeitado.

Desde miúdo. De pai e mãe, pra começar. Eram mais velhos. Ele, fruto dessa união tardia. Entende? Uma criança que carecia da paciência de pais mais jovens? Mas, coitados. Trabalhavam muito. Não tinham muito tempo pra ele, não.

Tornou-se um infante criado ora na frente da TV, ora mergulhado em Lobato, ora nas HQs.

Foi onde aprendeu a seguir em frente, inventando mundos. Primeiramente com papel, caneta e tesoura. Era como se, na vida de verdade, não fosse possível ser feliz. Aquela infância solitária seria apenas o começo.

Os fatores ambientais não o ajudaram. Família simples, pouco viajada. Conheceu pouco a vida fora de casa. Sabia mais do mundo e da vida pela TV, depois pelo cinema. E não havia muito o que dizer sem que se sentisse um idiota. Ah! Por não ter vivido aquilo tudo mais de perto? A roda de pessoas próximas era, por isso, pequena.

Não se dava bem em grupos grandes, entende?

Às vezes, tentava superar essa limitação fingindo ser quem ele não era. Aprendeu de criança a inventar mundos que lhe coubessem. E assim fez, inúmeras vezes, para enganar uma incapacidade nata de conviver. Na verdade, até esperava que isso o aproximasse mais de outras pessoas. 
Mas não perto o bastante.
 
Nunca se encaixou em nenhum grupo, na verdade.

Tinha quatro, cinco anos, quando foi matriculado na escolinha. E já sentia-se rejeitado pelos coleguinhas do colégio. Certeza que não gostavam dele, muito, não. Acostumado só a ele mesmo com os pais, seria um processo mais difícil esse, o de aprender a conviver.

E foi mesmo.

Para sempre. Repetia-se a cena doméstica: não era incomum vê-lo brincando sozinho, pelos cantos. Mesmo os seus "amiguinhos" favoritos demonstravam ter outros favoritados. 
 
Recorreu à imaginação, mais uma vez. 
 
Demonstrava algum interesse pela escrita, algo que poderia lhe render alguma atenção. Mas sempre havia alguém que lhe superasse nas classes de redação.

Muito frustrante.

Conheceu a paixão precocemente. Na mesma fase de pré-escola. Mas a menina mais linda da sala, coitado, nada quis com ele - claro! Crianças! Só que... nas contas do bardo... rejeitado, mais uma vez! Psicologicamente, aquilo foi para sempre. Desde então, passou a colecionar amores secretos.

Fugiu para o inconsciente.

As paixonites, as que de alguma forma demonstravam interesse - ainda que não romântico, nem carnal. Pois ficava a admirá-las, à distância. As considerava inalcançáveis. Estavam sempre numa espécie de pedestal imaginário. E ele no chão, venerando-as. 
 
Mal subia degrau, não se aproximava com frequência, com medo da negativa a seus sentimentos. Temia sempre a volta da tal da rejeição. Aumentava nele aquela sensação de que nasceu de uma sucessão de erros. No tempo errado, na hora errada. Um equívoco.

E assim cresceu.

Tornou-se um adulto solitário, ainda que em excelente companhia. Um na multidão, tipo. E era como se fosse bipolar - se numa hora estava bem, brincando, sendo agradável, gentil, companheiro; na outra agredia quem estivesse por perto. Era grosseiro, estúpido mesmo! Explosivo. Como se fosse incapaz de ter um bom juízo das coisas.

Pressionado, se punha na condição de vítima das circunstâncias.

E a família não tinha saco pra isso. Muito menos os parcos amigos. A verdade é que, por isso, sentia-se MUITO só. E a vida inteira esperou por um jeito de amar, só que do tipo que não existe na Terra. 
 
Amor de verdade, pra ele, deveria ser algo poderoso. Arrebatador. De cinema, literatura. Coisa inventada, sabe? Não havia como. Ele, talvez, não houvesse também.

Aceitou que seria mesmo uma espécie de homem invisível.

Um dia chegou a imaginar que seria um grande personagem para uma crônica. Enfim sua história, talvez, inspirasse outros. Que ajudasse alguém a não se sentir tão solitário tc etc etc. Tsc. Mas não durou muito.

Como disse, bem...

Era um tipo desinteressante por demais, realmente sem graça. Quem escreve pros outros quer reconhecimento, quer se destacar com grandes personagens. De preferência, vitoriosos, capazes de grandes reviravoltas. Mas aquele? Cuja família não se interessava, nem amigos, nem  amores? Escrever o que, cara?

Que leitores se habilitariam a segui-lo, diga? 

O autor percebeu o engano meio que tardiamente. Até tentou escrever algumas linhas, desenvolver um perfil psicológico que - talvez - fizesse o personagem ganhar alguma densidade. 

Não. 

Parecia mais merecedor de pena. 

Mas uma dó mendigada, sabe? 

E será que não havia nada de bom que valesse a pena nele?

Nada, nem um respiro para tanto sofrimento?

Foi cansando daquele sujeitinho, daquela vida medíocre dele, daquele vazio todo. Daquele vitimismo bobo, infantil, de alguém já tão velho de guerra. Realmente, um engano. Esse não merecia. Chegara ao fundo do poço. Enfim.

Rejeitado até aonde se escondeu a vida inteira.



por Bob LeMont

LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...