21/05/2020

CHEETOS


 
- Cara, pega um Cheetos aí! - sugere, tentando tranquilizar o clima pesado.
- Eu vou me embora... - diz, aos berros, segurando a mochila com o pouco que conseguiu juntar após quase entrar em colapso nervoso. Um notebook, cabos conectores diversos - inclusive para celulares - camisas limpas, algumas cuecas, meias. 
- Fica calmo...
- Calmo? São 60 dias dentro de casa. Essa quarentena está me enlouquecendo.
- Ahahah... dois meses em casa, saudável.. agora prefere ir pra rua, ficar exposto pra Covid-19?
- Sim e nada do que você disser vai mudar o que eu penso... - retruca, ainda agitado, teimosamente, enquanto procurava as chaves do apartamento.
- Você é do grupo de risco, cara. Tem asma, pressão alta. Não duvido que esteja diabético, não vai no médico faz tempo.
- Não paga pau... você sabe por quê...
- ...eu sei e não estou censurando ninguém... estou querendo acalmar você, pra gente poder conversar e colocar as ideias no lugar...
- ...eu não quero conversar! Eu quero sair, ver a vida, ver pessoas...
- ...você vê pessoas quando vai ao supermercado!!!
- AS MESMAS PESSOAS??? A Ana da Dona Lucélia?? O Pedro dono do bar??? Ah!!! O velhote do 305??, que nem deveria estar na rua, e encontrei com ele mais vezes nas últimas oito semanas que encontrei com meus pais! CHEGA!!!
- Para de se fazer de vítima.
- Eu vivo aqui, sozinho...
- Eu também!
- Você não conta.
- Fazemos ginástica juntos, vemos LIVES na internet juntos... que mais?
- Cerveja! Muita cerveja! E Netflix... e Amazon... e Globoplay... e mais cerveja...
- E Cheetos!
- Cheetos... 
- Ora, ora. Está claro! O Home Office é uma bênção do capitalismo. Tempo de repaginar. Se conectar a novos prazeres, administrar seu tempo melhor e sem depender dos outros...
- ...estou só! Preciso de sexo! Preciso dos meus amigos! Da minha família, caramba! 
- Saia e se contamine. Onde você gostaria? Na maçaneta da portaria? No corrimão da escada do ônibus?  Na banheira do Motel?
 - Eu... não ando de ônibus...
- ...encontre amigos, família, transe e passe o vírus adiante.
- Dane-se!!! Tchau!!! - ameaça sair, colocando a tetrachave na porta
- Está sendo infantil. E egoísta. 
- As duas coisas... e daí?.. se eu quero minha mãe...
- Freud explica!
- Não desse jeito! Ei!!! Eu quero abraçar minha mãe. Meu pai.
- O maior gesto de carinho seu para com eles agora é ficando em casa.
- Mas eu...
- Guarda a mochila? E essas roupas  pessimamente dobradas? vai ter que passar tudo de novo...
- É roupa preta. Nem aparece sulco nenhum... - responde, já tirando o computador e colocando sobre a mesinha de sempre. A cadeira da sala já até ganhou a forma de seus glúteos. O peso da gordura, acumulado nos últimos dias, ajudou a fixar. 
- Pega um Cheetos e relaxa. 
- Cheetos não me relaxa. Cheetos é minha reação ao estresse. É a minha... fuga...
- Ele é consequência, não causa. Come pra encontrar aquele lugar de paz na infância e tal. 
- A segunda tirada psicológica de hoje. Desde quando você é psicanalista? 
- Você precisa de alguém com a cabeça no lugar, senão vai acabar pirando nessa quarentena.
- Ah... - leva um susto.
- O quê?
- Acabou o Cheetos...
Silêncio.
- Cara, você precisa sair! - diz, alterado, mudando totalmente o tom calmo. 
- Mas você disse... - ele parece confuso.
- Eu sei o que eu disse. Não toque na mochila! Vá, mas volte. É só mais uma ida ao Supermercado, simples. Tá liberado. 
- Eu não quero ir. Não quero mais Cheetos.
- É claro que você quer! Nós precisamos dele. 
Silêncio.
- Tá. Mas vou comprar só dois pacotinhos. Do pequeno.
- Do médio!
- Tá.
- Você precisa dar uma volta... 
- Eu preciso MESMO dar uma volta. Acho que tô pirando com isso tudo. Crise sanitária, quarentena, as merdas que aquele cara diz. Não tô bem.
- É. Busca um Cheetos pra nós. 
- Tá... - diz, abrindo a porta da sala...
- Ow!!!
- O quê??!!
- A Máscara!!!
- Nossa... quase esqueci... aliás, esqueço sempre dessa m... tô falando? Minha cabeça não tá boa, não... não tá.. mmmm... mmmmm...

Coloca o acessório de rosto e saiu 
Silêncio no apartamento vazio.
Surge uma nova conversa, em tom baixo, no sofá sujo de migalhas.

- Pôxa... podia ter pedido umas Pringles também... - lamenta o bigodudo na arte da embalagem de batata frita vazia, largada sobre o sofá... - tô me sentindo tão sozinho também...
- Você é caro!!! Eu tô em promoção!!! Ele é meu! niahahahahaha - responde sorrindo, maquiavelicamente, o guepardinho desenhado no leiaute do saco vazio e amassado de Cheetos, jogado logo ao lado - Viu como ele me obedece cegamente? 
- Hum! Eu hein.. essa quarentena tá deixando todo mundo maluco... - balbuciou o bonachão de bigode.
- Ele está sob o meu poder.... MEU PODER!!! niahahahahaha... 

Há quadras dali, ele apenas tenta não pensar na continuação desse diálogo insano enquanto segue para o mercado. Não está bem! NADA BEM!!!

por Robson Leite

Nenhum comentário:

Postar um comentário

LINGUA

A língua, esse pedaço de carne cercado de gente por todos os lados.  A turma da biologia vai dizer que ela não passa de um processo muscular...