03/06/2020

DONA NONOCA E A GAVETA


Não sei se já me apresentei!

O nome é Lemont. Bob LeMont. Indonésio, mas nascido em Andorra. Sim. Minha vida é estranha mesmo. Enfim! Sou jornalista, roteirista e dublador, talento que herdei de vovô. O velho Ted trabalhou intensamente nos filmes de Chaplin e Buster Keaton nos anos 1910. 

Infelizmente, estamos desempregados desde o surgimento do cinema falado.
Nem por isso me afastei da chamada Sétima Arte. Tenho bons relacionamentos no meio. Conheço Quentin Tarantino, Steven Spielberg e Francis Ford Coppola. Eles que não fazem ideia de quem eu sou, mas isso não diminui em nada meu talento. Lamentavelmente, também não agrega coisa alguma. Me dou bem com os bilheteiros.

Entendam que me esforço dentro da profissão de roteirista. Meu cinema é autoral, trabalho de forma bem hermética. Meu quarto na pensão da Dona Nonoca não é dos maiores, então acostumei à falta de espaço. E de dinheiro também. 

A Dona Nonoca não. Ela insiste em cobrar o aluguel. Velha insensível. E ingrata. Ninguém aguentaria dormir naquele cubículo fétido e sujo por seis meses como eu. Hoje ele tem meu toque pessoal. Quando cheguei, o quarto era apenas sujo.
Tenho muita coisa na gaveta. 

Difícil é encontra-la. Costuma estar na direção da axila direita. Meus instintos me guiam. Pra tudo. O quarto não tem luz. Não acho confiável escrever à luz de velas, portanto só escrevo de dia. Sou assim, das antigas. Gosto de usar a velha máquina de escrever. Tinta e papel de verdade. 

Escrevo por horas e ponho na gaveta. Quando chega a noite. Alguns dos meus melhores textos vivem lá. A gaveta. Histórias incríveis. Eu começo, paro. É tipo um... um... ah! um Filé à Chateaubriand. Não faço ideia da metáfora, só me bateu uma fome terrível. Tenho gatilho.

Meu roteiro mais recente tem como personagem único um cara. Um escritor. O filme começa com plano geral. Um quarto pequeno, apertado. Uma mesinha, uma cadeira. Uma portinha no canto. O escritor entra pela porta. Puxa a cadeira. Senta-se diante da máquina de escrever que estava sobre a mesinha o tempo todo. Nela um papel. Em branco. 

O escritor permanece parado por um tempo, observando aquele pedaço de folha vazio. Takes diversos. Rosto, máquina, papel, rosto de novo. Pensando, pensando, pensando. Rosto, máquina, papel. Até que ameaça começar a escrever. É quando a tela escurece rapidamente. E fica assim por 3h43. Tela escura. Nem um som. Sobem os créditos. Você não leu errado, não. Tela escura. Nem uma palavra, nem um som. Uma homenagem a... desculpem, fiquei emocionado.. homenagem ao Vovô Ted LeMont...

Esse é o arco fundamental de FADE IN, meu projeto do momento. Uma imersão na mente de um escritor em crise criativa. Imagino silêncio na sala de projeção, que sendo substituído por crises de tosses nervosas, depois pedidos de pshhhhhh, evoluindo para reclamações brandas. Até que, em algum momento, alguém da plateia vai começar a berrar QUE P@#$RR%$&A É ESSA? Cara! Cinema imersivo. O que acontece no cinema é o filme. A própria encarnação da dor do escritor, sua mente vazia, num limbo sem fim, escutando as vozes interiores que lhe condenam. Algumas xingam. Nomes horríveis. Isso é arte! 

Está na gaveta. Um grande filme, com certeza. 

Mal terminei de escrever e já tenho ideia da sequência. O filme começa em total silêncio. Total. A sala totalmente escura. A primeira cena idem. Assim como a segunda. A terceira. E assim por diante. Serão 2h42 minutos de tela preta. Pretinha, como a asa da graúna. Até que no minuto final, faz-se uma fusão para o escritor do primeiro filme, O ambiente é o mesmo - plano geral, ele diante de sua máquina de escrever e aquela mesma folha de papel. Mas ela não está mais em branco. A câmera se aproxima lentamente. Percebemos que a folha está preenchida. Um grande zoom e a audiência consegue finalmente ler... 

FADE IN 2. 
A tela escurece. 
Sobem créditos. 
A Dona Nonoca ainda vai se orgulhar de mim! Onde quer que ela esteja. Faz três dias que não bate na minha porta pra cobrar o aluguel. O que estará aprontando? 

FINAL ALTERNATIVO
Pensando bem... talvez... TALVEZ! eu seja um personagem de mim mesmo e esteja vivendo metaforicamente em uma gaveta escura, simbolizando meu próprio medo da rejeição do público. Mas à espera de quem me leia e não me cobre por isso. Uhmmm. A ideia é boa. Mas. Sic. Não sei se daria um filme.
Talvez um mini-conto. 

Eu disse TALVEZ?

por Bob LeMont 

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