19/08/2021

BABACA

 

Foi pra rua, caminhar, como fazia desde o começo do ano. 

Parou de fumar no ano passado, está bebendo menos. Comer em excesso já não é problema há 10 anos: fez a bariátrica, não tem como aderir a farra alguma na cozinha. A vida mais sadia era a meta pro ano novo. Caminhar, aprender a respirar. Encontrar um ponto de equilíbrio.

Que ano! Brigou com meio mundo por causa de eleição. Mas não dava mais pra aguentar aquela gente estúpida, falando aquelas bobagens todas, defendendo político que não tão nem merece defesa. Por conta disso, não falava mais com vizinhos, colegas, cunhado, e até com o irmão mais velho.

Clima ruim nas casas dos pais e dos sogros. É. "Natal e Reveillón vão ser uma merda", pensou, enquanto zerava o cronômetro pra iniciar a caminhada. Deu dois passos e sentiu um toque no ombro esquerdo.

Foi abordado por um rapaz.

- Você não é o Lugui? Aquele youtuber?

Não lhe pareceu, a princípio, ser alguém conhecido. Chamou-lhe pelo nome que usa em suas redes sociais e acertou na profissão, que usa como referência nos perfis: deve ser um seguidor. 

- Eu mesmo! - respondeu, sem olhar nos olhos para não criar uma falsa intimidade, mas devolveu o sorriso que recebera. Fingiu estar com dificuldade para zerar o cronômetro no relógio de pulso.

O rosto do rapaz mudou diante da confirmação. De simpático para... como descrever? Vazio? O olhar já não dizia nada. A respiração pareceu um pouco mais ofegante que o normal, mas poderia estar caminhando também. Afinal, era uma pista pública, feita para isso. Apenas. Não havia mais expressão alguma. 

Um breve silêncio precedeu o estalo.

Pá!

Dois segundos depois, conseguiu fitar o rapaz nos olhos. Mas sentiu a queimação na boca do estômago e quem estava em volta sair correndo. Novo estalo.

Pá!

Antes de cair, viu a arma na mão esquerda. Sentiu que desfalecia. Um filme da vida foi passando diante das vistas. Cenas da infância, da juventude. Romances que não deram certo, amores eternos. Viu nitidamente os pais, a esposa, a filha que faz intercâmbio no Chile. Até as brigas online. Aquele cara estranho, que começou a seguir você em cada postagem. O que tinha olhos com cores diferentes. Louco. Bloqueio nele.

Pá!

Já no chão, olhou pra cima. Viu seu assassino ainda preparar mais um tiro. Voltou a mira-lo bem nos olhos, como se procurasse uma explicação, um motivo. Aqueles olhos! Um azul e outro verde. Heterocromia, pesquisou. Raro. O louco que lhe ameaçava, pelo que dizia a respeito do candidato dele, também tinha isso... dizia.. coisas!.. deu... medo... foi melhor... bloquear.. aquele... maluco...

Pá!

A última imagem foi a postagem que encerrou o assunto entre eles nas redes sociais. "Cara, cansei dessa palhaçada!!! Pare de me seguir, por favor!!! Vou dar block em você, seu fascista covarde e escroto! Seu babaca!"..

Pá! 

O rapaz conferiu se Lugui estava mesmo morto. Jogou a arma do crime, já sem balas, dentro do rio que passa bem ao lado da pista de caminhada. 

Uma motocicleta fez bastante barulho antes de parar ao lado dele. 

Subiu na garupa e, antes de sumir na avenida, deixou claro para o cadáver (como se isso fosse possível).

- Põe na conta do "babaca"!!! Seu trouxa!!!!

Cuspiu sobre o corpo e partiu.
Nunca mais foi visto.

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